Wednesday, December 31, 2008

Cem Anos de Fundamentos

Firmeza nas mesmas Coisas
O meio ambiente religioso de Filipos da Macedónia era propenso aos sincretismos.

Foi terreno fértil tanto para os cultos de Ísis e Artémis, como para os cultos greco-romanos, até o culto inelutável de uma religião imperial. O conhecimento do judaísmo helenizado também não seria esquecido. A própria magia corria pelos dedos dos filipenses como rios de dinheiro, o uso mercantilista dos espíritos demoníacos.

Foi neste contexto que Paulo chegou a Filipos e fundou uma igreja cristã, pela qual passou a sentir grande afecto.

Como o apóstolo Paulo nunca foi um produto da assimilação das opiniões que corriam nos seus dias, em certo sentido, diríamos que foi líder de opinião.

Fosse qual fosse o território onde as suas viagens missionárias o levassem, a aplicação da Verdade do Evangelho, da ética e da moral cristãs, a Salvação do homem e a Vida Eterna deste como retribuição futura, consistia no seu primordial objectivo.

Onde Paulo chegava, contra o monte Párnaso, ou o altar ao «deus desconhecido», ou mesmo os judaísmos voltados para o monte de Jerusalém, ele contra tudo isso, levantava o Gólgota, que era também a contra-cultura do seu tempo. E, na verdade, de todos os tempos.

Pela causa de Cristo crucificado, Paulo envolveu e conquistou a Macedónia. Como aos atenienses divulgou a infinitude e a glória do «deus desconhecido», que os gregos supunham brindar com a «santa» ignorância, aos macedónios filipenses ensinou que o verdadeiro «Deus Altíssimo» não ficava como refém de uma simples frase de uma mera adivinhadora. Sim, porque às vezes é preciso que se saiba quem é o Deus Altíssimo e o que significa nos lábios de quem o pronuncia (At 16,17; Lc 8,28), seja através das «pedras» que falam quando os homens se calam ou seja através de uma jovem endemoninhada.

Contextualizações para valorizar a firmeza
No meio dos ataques do sincretismo religioso, das políticas anti-tudo que viesse da Judeia, da legislação em vigor nas colónias greco-asiáticas do Império Romano acerca de actividades religiosas prosélitas, o autor da epístola aos Filipenses propugnava pela firmeza dos crentes da Igreja, na Macedónia.

«Abundância na caridade, na ciência e no conhecimento», «aprovação das coisas excelentes», «cheios de frutos de justiça», são alguns dos pontos iniciais que Paulo desejava e nos quais os cristãos filipenses deveriam abundar (1,9-11) com firmeza. Com efeito, pontos fortes indubitavelmente contra os sincretismos para aqueles dias e para hoje também.

Cem anos de Fundamentos
Pensamos que no século XXI os sincretismos tomaram forma avassaladora como produtos do chamado pós-modernismo relativamente às religiões e aos valores, até mesmo sob a forma do profetizado Choque de Civilizações ( do recentemente falecido prof. Samuel Huntington), contudo os avisos sobre os sincretismos religiosos começaram cedo nos inícios do passado século XX.
A primeira e prevalecente «civlização», segundo a leitura do autor supracitado, foi sem dúvida a Ocidental. Nem se podia falar nessa altura de um «choque», o Ocidente começava a instalar-se sobre todas as demais: latino-americana, islâmica, chinesa, hinduísta ou mesmo africana, etc. O Ocidente prevalecia também definido em torno de uma religião, o Cristianismo.
Em 1909, há exactamente cem anos, «Deus levou dois Cristãos leigos, Lyman e Milton Stewart, a comprometerem-se com os gastos da publicação de uma série de doze volmes que deveriam apresentar os fundamentos da fé cristã.»( Os Fundamentos, R.A.Torrey, Hagnos, 2005)
Os referidos magnatas do petróleo californiano, dispuseram a sua fortuna para espalhar os Fundamentos.
As suas doutrinas foram e continuam a ser fundamentais na Fé Cristã, aqui algumas em síntese:

Bíblia Sagrada, no seu conteúdo espiritual e na sua estrutura literária, veículo para conhecer os fundamentos da humanidade, Palavra de Deus para a Salvação, para a Moral e a Ética do criatura humana.
Deus, Pai Criador, omnipotente, omnisciente e omnipresente no Universo.
Deus em Cristo. O Deus-Homem, o nascimento virginal de Jesus Cristo e a Sua ressurreição corporal dentre os mortos.
Espírito Santo, Pessoa divina que intervém no confronto do coração humano com a necessidade de Salvação que Deus-Homem trouxe à humanidade, a Redenção por causa do Pecado.
Vida Eterna como retribuição futura do crente.

Então, era preciso combater as incursões do liberalismo. As armas práticas foram remetidas «gratuitamente a ministros do evangelho, missionários, supervisores da escola dominical». Sabe-se hoje que três milhões de volumes foram então distribuídos, ainda que exclusivamente no mundo anglo-saxónico.
Nesse momento da história em que a conjugação do chronos e kairos se realizaram felizmente como tempo e oportunidade, o Fundamentalismo tornou-se um enorme e inexpugnável «Pártenon» doutrinário.

Monday, December 22, 2008

Anunciação


O que estava dentro dela
a Alegria, o Nome
escrito
da direita para a esquerda,
Maria não O via
ainda com seus olhos.

Um anjo imune
ao calor de dia, ao frio
do fundo das almas desertas,
desceria
do tecto do céu
para anunciar a passagem
de Deus no mundo.

12/2008

Wednesday, December 17, 2008

Os Sapatos de Desprezo


Sapatos de desprezo voaram
decididos
na cabeça da América
anos de submissão forçada
ganharam asas sólidas
súbitas
como grito das entranhas
que ressoa a Babilónia

Nabuco rasou as torres
ainda altaneiras
de Nova Iorque.

Poema de Brissos Lino

12/08

in A Ovelha Perdida, hoje

Thursday, December 11, 2008

10 anos de défice de concordância verbal

Parece que existem razões para criticar a Nova Versão Internacional (NVI) do Novo Testamento, publicada pela Editora Vida e datada de 1998.

Mas nem todas essas razões serão do âmbito da teologia do Texto Sagrado, mesmo quando o marketing diz que «a tradução da NVI é isenta de interpretações particulares ou denominacionais.» Nem corroboram necessariamente as críticas através das quais algumas Igrejas Evangélicas fundamentalistas afirmam que se trata de uma versão moderna visando «enfraquecer diversas doutrinas como a Divindade de Cristo, a expiação por Cristo e só pelo Seu sangue, Sua morte vicária, etc.etc.»

Ao atribuir-lhe influências que talvez tenham pesado, como a vetusta versão de Westcott e Hort (feita em 1881) e que deu origem ao chamado Texto Crítico, tais razões até acabam por respeitar uma Versão que é produto de «dez anos de trabalho intenso, milhares de horas gastas, por eruditos de diferentes especialidades teológicas e linguísticas».

Com efeito, no aspecto linguístico e das estruturas da frase, da beleza de estilo e de um discurso concordante, é que perante alguns trechos nos quedamos perplexos pela má qualidade desse discurso, nesta tradução para a língua portuguesa. O que felizmente não acontece com outra versão traduzida para a nossa língua na designada A Bíblia para Hoje, mais conhecida por O Livro, da Socidade Bíblica de Portugal, de 2000(?), cujas estruturas da frase estão correctas e são dinâmicas.

A verdade é que à publicação da NVI enquanto linguagem adequada ao entendimento do homem do século XXI, de muitas leituras e que sabe distinguir um bom texto de um mau texto, corresponde uma redacção muito pouco cuidada, no rigor do bom português e na dialogia (em síntese a figura do diálogo que dá vida a uma argumentação), o que qualquer bom texto ou boa obra já não dispensam, nos nossos dias.

A NVI exibe, de facto, alguns défices na sua sintaxe, na sua prosódia, o que não abona a produção de um bom texto comunicacional.

Infelizmente para quem tanto invoca, com razão e, sem dúvida, honestidade, a ciência linguística que nos sublima o legado dos textos escritos remotamente, mas de conteúdo eterno, incorreu-se num mau serviço prestado à natureza dinâmica da linguagem. Esta com certeza que exige actualização da língua, mas não faz pactos com erros de estrutura na sintaxe. O que se comunicou bem no passado não pode tornar-se menos belo e estético no presente, apenas para que possa ajustar-se à comunicação de massa, isto é, a uma divulgação massiva.

A contemporaneidade não pode significar sincretismo, sobretudo no que concerne aos Textos Bíblicos, e jamais o rebaixamento do nível da compreensão da mensagem, «popularizando» a mesma ao ponto de quase a fazer sucumbir a uma actual e infeliz iliteracia.

É o caso de algumas passagens dos Evangelhos em que a narrativa está ordenada com um défice de concordância.

A Concordância Verbal

Como se sabe, trata-se da solidariedade entre o verbo e o sujeito, e nas suas regras gerais, os autores da celebrizada Nova Gramática do Português Contemporâneo, Profs. Celso Cunha e Lyndley Cintra, 1984, vão à concordância do verbo com o número e a pessoa e o sujeito, vão até aos casos particulares dos pronomes e da regência dos verbos.

Os Exemplos Infelizes da NVI

Salvo melhor opinião, as divergências no tratamento vocativo dos protagonistas de alguns trechos dos Evangelhos não condizem com o modo das relações pessoais, nem tão-pouco com o original grego, de cuja origem linguística o Novo Testamento parte e os autores da NVI reivindicam, e bem, o ponto de partida na fidelidade ao original.

Eis alguns desses exemplos:

-Mateus, 3. 14,15 : «Eu preciso ser baptizado por ti, e tu vens a mim? Respondeu Jesus: «Deixe assim por enquanto; convém que assim façamos, para cumprir toda a justiça». Acresce que o verbo grego aphes é conjugado na 2ª pessoa, activamente, ( pelo que devia ser deixa e não deixe) .

-Mat 4. 6,7: «Se tu és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo.» Jesus lhe respondeu:«Não tente o Senhor seu Deus».

-Mat 4.9,10: E (o diabo) lhe disse: «Tudo isto te darei, se te prostrares e me adorares». Jesus lhe disse:« Retire-se, Satanás! Pois está escrito: «Adore o
Senhor seu Deus e sirva somente a ele.» Do modo como está redigida a reconstrucção da frase, oriunda do hebraico Shemá, pode inferir-se que a mesma parece querer exortar Satanás a que «deve adorar e servir» o Senhor. O que é, no mínimo, uma impossibilidade teológica.

-Mat 8.21,22: Outro discípulo lhe disse: «Senhor, deixa-me primeiro ir sepultar meu pai.» Mas Jesus lhe disse: «Siga-me, e deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos.»

Procuramos aqui, como se percebe, o paradigma do diálogo de Jesus com três personagens diferenciados. Um histórico, um ente espiritual, e um desconhecido. E não entendemos por que razão o tu se torna você, num cerimonial não adequado.

Outros exemplos de outros tantos aspectos paradigmáticos, não deixam de nos causar alguma perplexidade.

-Marcos 1. 40,41: Um leproso aproximou-se dele e suplicou-lhe de joelhos: «Se quiseres, podes purificar-me!» Cheio de compaixão, Jesus estendeu a mão, tocou nele e disse: «Quero. Seja purificado.» Imediatamente a lepra o deixou, e ele foi purificado.

O referencial forte do verbo katharídzo (limpar, purificar, declarar ritualmente aceitável), tanto permite a voz imperativa «fica limpo», como «purificado», mas é a forma de construir a oração da narrativa em discurso directo que lhe confere o ênfase e a emoção do texto.

Salvo melhor opinião, no texto da NVI, há uma frieza de discurso, que quase se revela neutral. Parece que o tom da narrativa acentua uma declaração formal por parte de Jesus, como que a declarar ritualmente aceitável o leproso, e não a acção dinâmica de Jesus a operar o milagre da cura através da sua palavra poderosa e declarativa. Para além de uma certa impessoalidade no trato, o que nunca foi uma atitude de Jesus mantendo à distância socialmente os necessitados e doentes.

- Lucas 13.23-25 : Alguém lhe perguntou: Senhor, serão poucos os salvos? Ele lhes disse: «Esforcem-se para entrar pela porta estreita, porque eu lhes digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão. Quando o dono da casa se levantar e fechar a porta, vocês ficarão do lado de fora, batendo e pedindo: «Senhor, abre-nos a porta». Neste exemplo de ausência de concordância, os pronomes pessoais confundem o díalogo. Nem precisamos do grego légõ ýmin, basta que consideremos as pessoas gramaticais que nos são indicadas para a compreensão de um colóquio: «com quem se fala» são o tu e o vós; e «de quem se fala»-ele, eles. O primeiro caso gramatical é aquele que se adapta ao nosso texto.

- João 3. 7: Não se surpreendam pelo fato de eu ter dito: É necessário que vocês nasçam de novo. De facto, para este trecho há opiniões que dizem que a língua grega implica um plural. Em nossa opinião, após a análise de outras versões, até mesmo da Holy Bible, New Intenational Version, da «New York International Bible Society», de 1978, ou João está a narrar o que Jesus Cristo já havia ensinado a um conjunto de outras pessoas, e, portanto, trata-se de uma transcrição em discurso directo, ou se está a forçar a gramática grega do texto original a algo que ela não pretendeu estabelecer.

O facto é que no NT grego o verbo dizer e o pronome pessoal, é referencial à 2ª pessoa do singular, na primeira parte do versículo ( «Não te admires de eu te dizer »). Já na segunda parte, o pronome está no plural. Jesus relembra o que já teria dito em colectivo: «Necessário vos é nascer de novo »?

Não podemos afirmar isso, podemos apenas relembrar que no início da conversa entre ambos foi o que Jesus começou por afirmar «Se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.» Mas o mais provável é ser uma assertiva de carácter universal, abrangente e por essa razão ( na língua grega) gramaticalmente impessoal.

Finalmente, relevo da intenção da NVI o pretender alcançar uma «linguagem relevante ao coração do homem do século 21», com reverência e comprometimento, embora críticas menos benevolentes, em matérias doutrinárias, proponham que há nesta versão ataques e diatribes contra a genuína Palavra de Deus.

Wednesday, December 10, 2008

60 Anos de Direitos Humanos


60º aniversário da Declaração Universal
Na imagem a revista que evocava o 30º aniversário,em 1978.

"CRIOU DEUS, POIS, O HOMEM À SUA IMAGEM, À IMAGEM DE DEUS O CRIOU; HOMEM E MULHER OS CRIOU." Génesis,1,27

Wednesday, December 03, 2008

Adenda a "Morte com Interrupções"

(...)
O Prémio Nobel da Literatura português previu ficcionalmente um facto contrário às normas da vida, a ausência da morte. Contrariamente a outras declarações suas pessimistas, estava a contradizer uma observação comum à decada de 40 do escritor argelino Albert Camus, segundo o qual «os homens morrem e não são felizes». A seu modo gosta também de elaborar uma escrita sobre absurdos. Por outro lado, parece-nos que ajudou também ao pessimismo telúrico e barroco de Miguel Torga, que cantou «Apetece morrer, mas ninguém morre», no poema Dies Irae .

Monday, December 01, 2008

Morte com interrupções


“No dia seguinte ninguém morreu.” E as consequências éticas, filosóficas, religiosas do desajuste da demografia mundial estavam lançadas, por ninguém morrer.
Trata-se aqui do início da intriga ficcional do romance «As Intermitências da Morte»(2005), de José Saramago, que repetiu, formalmente, o seu estilo na pontuação e no uso de minúsculas.

O Prémio Nobel da Literatura português previu ficcionalmente um facto contrário às normas da vida, a ausência da morte. Contrariamente a outras declarações suas pessimistas, estava a contradizer uma observação comum à decada de 40 do escritor argelino Albert Camus, segundo o qual «os homens morrem e não são felizes». A seu modo gosta também de elaborar uma escrita sobre absurdos.

Desde que a sua literatura começou a ser prolífica e marca de griffe editorial, que José Saramago tem uma tendência para surrealizar o que ele mais contesta, a religião cristã, o que não pode suportar, a «solução Deus», e por isso antepõe que Deus «é o problema». Em entrevista recente ao «Diário de Notícias»(5/11/2008), afirmou que a Igreja «está em toda a parte e meteu-se nas nossas vidas e não quer sair». Segundo o escritor ela “tem uma obsessão moldadora”.

Portanto, não tomando a religião cristã pela alegoria da caverna de Platão( que glosou noutro romance), isto é, pelas sombras, reinventa-a em algumas realidades teológicas que são conteúdo incontornável do Cristianismo. É inegável que a sua boa escrita no plano científico da crítica literária, não sejamos preconceituosos, surpreende.

Evidenciando conhecer a Bíblia, não o poderemos negar, o autor do «Evangelho Segundo Jesus Cristo» gostaria de «desmitologizá-la» como em certo sentido o fez Rudolf Bultmann, o téologo, no que concernia aos Evangelhos. Como se estes fossem um tratado de mitologias que era necessário ajustar ao mundo moderno, usando para tanto um programa de desmitologização do evangelho, por exemplo, por em dúvida factos da vida de Cristo. Por vezes de subvertê-los, porque não quer nada de sobrenatural e não pode basear-se em outra explicação que não seja o seu ateísmo militante.
Desta forma, no seu Evangelho Segundo...coloca um facto central do Cristianismo, Cristo na Cruz.

Todavia, mistura-lhe um acontecimento diverso e doutra ocasião, a voz do Pai Celestial fazendo-se ouvir entre nuvens «Este é o Meu filho amado em quem me comprazo», e, por fim, altera todo o evento expiatório da Salvação, invertendo e mutilando uma das mais fundamentais palavras pronunciadas na cruz por Cristo: “Homens, perdoem a meu Pai, porque Ele não sabe o que está a fazer.”

Aqui está uma inversão blasfema, um reducionismo da crucificação a um mero caso de equívoco, uma humanização absurda do Divino. A qual pretende colocar aqui o problema da humanização da Divindade ainda que seja através de metáforas sob a capa da literatura. Há na realidade, escreveu alguém, no escritor português José Saramago, uma fonte vasta de inquietantes questões e esse livro destinava-se à problematização de algumas delas, como: A literatura humaniza o Divino ou diviniza o homem? Os textos bíblicos são ditames santos ou literatura santificada?

Mas é precisamente nesta área que Saramago gosta de elaborar ficcionalmente. Gosta de embaraçar os sentimentos de alguns leitores e de estabelecer contrastes. E o que pensa ser mito, prefere destruí-lo e reconstruir com outro mito, a que chama, em alguns casos, metáfora.

Era desta capacidade de Saramago para o cambio de valores, para lograr estabelecer inversões, para a efabulação e subversão de realidades enraizadas no património cultural e religioso dos cristãos, estejam estes no Leste ou no Oeste, que se falava com muito ruído no ano de 1992. O barulho aconteceu quando o romance de José Saramago Evangelho segundo Jesus Cristo foi cortado da lista dos concorrentes ao Prémio Literário Europeu, pelo Subsecretário de Estado da Cultura de então, Sousa Lara. Este nem teve sequer necessidade de recorrer a um dos Salmos(53,1), onde se afirma que «o insensato diz no seu coração: Não há Deus».

Pode ter sido um acto a roçar uma censura, admitimo-lo nessa altura, mas não tão execrável quanto isso, tomando em linha de conta as explicações do governo da época: "A obra atacou princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses. Longe de os unir, dividiu-os." A verdade é que alguma coisa do que escreve e diz o autor de Ensaio sobre a Cegueira, longe de unir, divide.
De resto, como escritor, é a sua marca de água. O tradicional anúncio do Prémio Nobel feito pela Academia, que caracteriza autor e obra galardoados, disse em 1998 acerca de Saramago, que se tratava de um romancista que “com parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia continuamente, nos permite apreender uma realidade indefinível".

Comecemos pelo fim, pela morte, no seu conceito judaico-cristão. O filósofo inglês Bernard Williams, o mais importante da filosofia da moral do século XX, argumentou um dia que a vida eterna seria tão entediante que ninguém podia aguentar. De acordo com ele, a constância que define uma eterna auto-existência implicaria um infinito deserto de experiências repetitivas. Baseou-se numa peça teatral de referência de um autor checo da década de 20, Karel Cepek, que criou uma personagem Elina Makropulos, de 342 anos, que tendo bebido o elixir da vida eterna desde os 42 anos, opta por deixar de tomá-lo e morre. Ambos, dramaturgo e o filosofo moralista defenderam o chamado tédio da imortalidade.

As Sagradas Escrituras, de uma forma lapidar, estabelecem que ao “homem está destinado morrer uma vez, vindo depois disso o juízo”, o apóstolo Paulo apontou a causa, ao dizer que o “salário do pecado é a morte”. José Saramago preferiu efabular sobre o fim inesperado da Morte. Dir-se-ia a morte da Morte.

Acercando-se deste aspecto da desconstrução de um facto, a revista The New Yorker publicou no final de Outubro uma crítica literária à tradução do livro “Intermitências da Morte” nos Estados Unidos. Segundo o articulista, a obra resume aquela tese de Williams segunda a qual a vida precisa da morte para fazer sentido - a morte é apresentada como o período negro que ordena a sintaxe da vida. A ironia do titulo da peça jornalística “Death takes a holiday" ("A morte tira umas férias") em conjunto com a simplificação do titulo da obra traduzida de Saramago, "Death with Interruptions", traduzem o sentido irónico e que altera a ordem ou o estado de coisas que o escritor utiliza para perverter um conjunto de dogmas que, partindo da ideia da morte, valorizam valores doutrinários da religião cristã.

Em síntese, entre outras finalidades de carácter literário, ficcional, o ataque a esse conjunto de dogmas não é a menor. As funções da igreja, a doutrina da ressurreição, a utilidade da pregação, etc.
Sem margem para dúvidas, a páginas 21, escutamos a conversa telefónica entre o «primeiro-ministro» e a «Eminência»: «Sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja:.. como lhe veio à cabeça que deus poderá querer o seu próprio fim».

Saramago tenta reescrever a história do Sagrado sob o prisma do fantástico e da ficção especulativa como se fossem os mais prováveis acontecimentos. «Dá-lhes uma sólida interpretação literal»- assevera o crítico da revista nova iorquina.
Nós acrescentamos: pelo próprio ateísmo em que vive e escreve Saramago, ainda que não possa fugir a escrever muitas vezes o vocábulo «Deus», seja em maiúsculas ou letra pequenina.