Thursday, December 15, 2016

AS FAMÍLIAS FELIZES DAQUI E DALI


“As famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são-no cada uma à sua maneira.”
Este é o início de “Ana Karenine” (1878) e uma das introduções mais famosas da literatura mundial. É um romance sem materiais plásticos de grande exterioridade, apesar da exuberância do estilo realista “art nouveau” russo.
Obra de arte, realismo literário, o maior romance já escrito, é tudo isso e o mais que a crítica pôde e poderá vir ainda a aduzir. Ana Karenine é, sobretudo, um romance saga onde se começa com um grande amor e uma maior compreensão pela humanidade, evidenciada nas famílias, por parte do autor russo, quiçá por experiência pessoal de um casamento repleto de perturbações e brigas. No entanto, contra-natura do quadro familiar normal, Ana Arkadyevna Karenine, é esposa e amante simultaneamente, esposa de Karenin e amante de Vronsky.
Isto e a hipocrisia determinariam e contaminariam todo o romance, se Leão Tolstoi não alertasse o leitor, desde o incipit do mesmo, para o facto de todas as famílias infelizes, ainda que no meio de uma felicidade aparente, hoje dir-se-á de rede social e revista cor-de-rosa, o serem cada uma à sua maneira. Heidegger disse uma frase que também resume o início de "Ana Karenine":
"Trazer à luz aquilo que na maior parte das vezes se oculta naquilo que se mostra."
Tolstoi disse-o de outro modo, não podendo dourar a pílula. Claro que tudo é aurifulgente neste romance, beleza, riqueza, popularidade, ou mesmo conjugalidade/fidelidade mal resolvida.
Depois deste grande romance, só houve uma antítese na literatura mundial, já no século XX, “As vinhas da Ira”, de John Steinbeck.
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Sunday, November 27, 2016

POESIA DE CARLA JÚLIA





Acordei
As portas do rosto
Me traziam o mar
A imensa ausência de ser
Então as portas se fecharam
E o mar se fez em mim
Regurgitando em minhas pálpebras
Como se tivesse perdido a âncora da vida.



NOÉ

Rótulos do tempo
Tomados aos bocados por seus cabelos
Em seus olhos cabia apenas o dilúvio
Que lhe envolvia
Como pescador de lembranças.
Nas entranhas da tenda
Se desfazia dos nós da vida
Entre os cachos de vinho
Que não guardaram a nudez de sua euforia.


NO TEU SILÊNCIO

Como se o vazio se pudesse explicar
Tento eu escrever este poema
Lançando pedras no rio
Da imaginação
Para por um instante crer que estás aqui
Ou ali, estendendo o olhar em um fio de amor
Para que te veja e retorne com um riso...
Mas no final a pedra afunda
E eu continuo aqui
Tentando reescrever o poema
Que no baú da graça deixei.




© Poemas de Carla Júlia, Maputo, Moçambique

Tuesday, November 01, 2016

OUVE-SE UM CHORO EM ALEPO



Um choro se ouve em Alepo
É Raquel chorando os seus filhos
Que não regressarão da escola

O grande pranto triste do fundo dos úteros
Que ficaram órfãos

Ouve-se um choro em Alepo
É Raquel a despedir-se
De si mesma.

01-11-2016
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Sunday, August 28, 2016

ONDE DAVID PÔS OS OLHOS

Micro conto 


Do alto do terraço, que recebe toda a luminosidade com que a tarde se espraia e demora nas varandas, David perguntava com o olhar quem era aquela mulher.
Formosa, num despudor que talvez não fosse inocente mas sem exibicionismos, apesar da sua beleza jovial.  Deixava passar sobre o corpo, na sua leviandade,  o frescor da água do  banho.
David, pastor de povos, tinha um enormíssimo rebanho, mas foi logo apaixonar-se por essa pequena cordeira, e roubá-la ao marido.
A jovem mulher também passava os olhos, despreocupadamente,  pelo próprio corpo, as suas mãos tocavam-no inocentes,  sem ter um rasgo de lucidez  que a levasse a pensar que poderia estar a ser observada. Mas os olhares reais estão acima de qualquer leve suspeita. Um olhar de soberano pode ser uma ordem, como foi o caso.
O vento não soprava com força, era um leve ventar, mas os cabelos compridos de Bate-Seba, molhados, não acompanhavam as voltas e revoltas do vento, eram ornatos negros que se moviam apenas aos movimentos do corpo.
Fazia-se sentir, no entanto, nos ramos das plantas ornamentais,  nas talhas douradas que adornavam o terraço.  E foi esse vento que agitou os véus e fez descobrir como, quase nua, se lavava Bate-Seba.
Ela lavava-se não tão inocentemente quanto possa parecer, como muitos séculos depois Pilatos, pegando numa bacia, lavou as suas mãos diante da multidão.

28-08-2016
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Thursday, August 18, 2016

JESUS–NO NOVO FILME “BEN-HUR”–“É UM INSTRUMENTO” ?



Quem viu há anos, ou nas sucessivas passagens nos canais de cinema do cabo, o filme Ben-Hur, baseado no romance de Lew Wallace do século XIX, interpretado por Charleton Heston, lembrar-se-á de que a figura de Jesus aparecia apenas em silhueta. Embora o enredo do romance se reporte a “A Tale of Christ”.
A nova readaptação de “Ben-Hur”, de 2016, trata a mesma história, como uma aventura desse tempo, sobretudo aventura ética e religiosa, em que os judeus têm uma palavra de supremacia moral a contrapor aos romanos, reforçando no filme o que foi o romance, classificado com algum exagero como “o mais influente livro cristão do século XIX”.
No que concerne à figura de Cristo no filme épico pré-cistão de 1959, Jesus não aparecia directamente, mas apenas em silhueta. 
Neste filme de 2016, a personagem Jesus (o actor Ricardo Santoro) aparece para construir todo o sentido ao protagonista Ben-Hur e à sua transformação espiritual.
O actor principal, Jack Huston, no papel de Ben-Hur, para reforçar a aparição de Jesus no filme, valorizando com legitimidade esta mais valia do "remake" do clássico, declarou à imprensa que a figura divina aparece porque “Jesus é um instrumento”.
Compreende-se, embora desajustado, o que se quis dizer com isso, é que assim o filme reforça a mensagem cristã.
Mas Jesus Cristo não pode nunca ser visto como um “instrumento”. Talvez, sem querer, isso explique muito do que se passa com as “igrejas” neo-pentecostais, as IURD, e outras derivadas, que apresentam Jesus de facto como “um instrumento” para todas as coisas: financeiras, pseudo milagres, manipulação dos fiéis, etc.etc.
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Friday, July 08, 2016

DISCURSO SOBRE A ÁGUA VIVA

(Alonso Cano)


Quero nomear-te e a única coisa que sei
Do teu nome é o meio-dia e o peso
Do sol sobre a ânfora
Do teu corpo, sobre a tua cabeça
Como um lençol de luz, quando procuras
Apenas  a sombra
A única coisa que sei, quando te nomeio
Formosa mulher de Samaria
É a força nas tuas mãos quando levantas a água
É a antiga submissão de fêmea
Que canta o cântico plangente da sua vida.

05-07-2016

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Sunday, May 22, 2016

SALMO PROFANO





(Gueto de Lodz, 1942)



Não, para além do vale da sombra da morte
Vais andar,  da estrela de seis pontas a golpes
De chicote, da auto negação
Do respirar o vácuo em vagões de gado
Até aos pulmões cheios de gás, Sulamita
Não, os teus cabelos não são os loiros
Cabelos de Margarete, nem os teus filhos
Dádivas de Deus,  ao teu corpo nu
 e à cabeça calva voltariam os carrascos
A esmagar a tua face contra o lodo
Não,  estiveste sempre sob o fumo
E as cinzas  que caiam e subiam de Auschwitz.

20-05-2016

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Tuesday, May 10, 2016

TRAVESSIA DO MAR VERMELHO



O  que nos movia para a margem
do mar vermelho, o desejo com asas
tranquilas e os olhos com a doce lágrima
da liberdade,
mesmo sob a febre do deserto?  Movia-nos
uma terra que não conhecíamos, ainda
perto do egipto e com os cascos dos cavalos
egípcios a partirem o silêncio sagrado do chão  
montadas e cavaleiros confiantes
na perseguição. O que movia um povo,
cujo censo estava nas estrelas, multidão escondida
para a margem do mar? A esperança juvenil dos velhos,
o útero das mulheres jovens
para darem à luz no leite e no mel
da terra prometida?

19-04-2016

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Monday, February 08, 2016

PERDÃO



“Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, as mãos
Que chicotearam,  os punhos
Que bateram por mimese, os cravos
Que perfuraram como dedos até ao meu coração
O meu coração rasgado
onde cabem todos os homens.

08-01-2016

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Friday, January 01, 2016

ORAÇÃO FEITA PARA UM ESPELHO


Lc 18:11-12

Graças te dou, a Ti, que estás desse lado
porque não sou como os outros, A minha ganância
é comedida,  A minha  justiça é de pedra
Não sou adúltero, A não ser comigo mesmo
e com a minha beleza,  Jejuo
para fazer compreender ao pobre que a fome
nos disciplina o corpo, Dou o dízimo de tudo
dos meus dez dedos, um
é teu e serve para apontar o erro alheio, Dos outros
não há ninguém que não seja publicano.

29-12-2015

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