o derradeiro versículo do cap. 28 de Actos do Apóstolos não tem, felizmente, solução de continuidade. Não pesa nele a interrupção.  
“ Pregando o reino de Deus, e ensinando com toda a liberdade as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo, sem impedimento algum” 
Pese embora a referência da narrativa ser dirigida ao trabalho derradeiro do Apóstolo Paulo em Roma, a intertextualidade da diegese não é apenas particular, é universal no que concerne à Missão da Igreja e aos Actos do Espírito Santo, que não cessaram. 
Este versículo permite muitas perguntas e outras tantas respostas, mas nenhuma dúvida. 
O final não é apenas histórico, no que concerne à biografia de Paulo escrita por Lucas, é sobretudo teológico, e, como tal, de continuidade.  É portanto demasiadamente claro. 
Em comentários bíblicos abrangentes de todos os versículos do Novo Testamento, por exemplo, encontramos alguma unanimidade na interpretação. 
Lucas pretendia escrever um terceiro volume( o seu Evangelho e os Actos, dois tomos de uma mesma obra)  para registar o julgamento e libertação de Paulo – dizem uns; a narrativa dá como terminada a história naquela circunstância da prisão fora do cárcere (a já usada prisão domiciliária) de Paulo – propõem outros. Ou o “fim abrupto da história de Paulo”, conforme a opinião do teólogo Oscar Cullmann. 
A verdade é que “Paulo estava restabelecido e a sua coragem reanimada pela graça(...); é ele quem encoraja, quem actua, sempre da parte de Deus, no meio de toda a cena”- escreve John Nelson Darby (J.N.Darby), num comentário com quase dois séculos aos Actos (1).  E, facto importante e até curioso, a história da relação de Roma com o Evangelho, a pregação do Evangelho,  faz-se com a prisão de Paulo nessa cidade imperial. 
Paulo pregava o Reino de Deus e ensinava acerca de Jesus Cristo. E esta acção não foi nem é jamais o fim da História da Igreja, essa História presente é um contínuo de somas desde o Século I,  enquanto a Igreja não for secretamente arrebatada por Jesus. 
Uma intertextualidade literária 
Atalhando caminho para uma intertextualidade clássica, uma vez que os  capítulos 27 e 28 de Actos são especialmente considerados também clássicos, do nível literário, e.g.,da Odisseia (de Homero) ou, salvo melhor opinião, do Canto I, de Ezra Pound, permitam-me que cite a mim próprio:  
“ No texto de Actos, o evangelista coloca a narrativa dentro da própria moldura da História e da biografia de Paulo, enquadrando-a nas circunstâncias políticas, religiosas e geográficas do seu tempo. (…)  Particularmente, a descrição com todo o seu ambiente, sai dos mares jónicos e torna-se, por si própria, num dos únicos e mais importantes documentos históricos sobre um naufrágio. (...)Rigorosamente, as mesmas qualidades evidentes nos trechos das obras clássicas de Homero e Pound (separadas por quase três 
milénios ) são notadas, também, na excelência do texto bíblico dos Actos dos Apóstolos.” (2) 
O carácter daqueles dois capítulos não é porém a ficção, é a verdade. Mas Lucas usou expediente literário para nos indicar que o derradeiro versículo da sua narrativa, era uma porta não fechada. E poderia bem terminar em suspenso com um “Assim que...”, como o citado Ezra Pound utilizou para a sua parafrase (o Canto I, de “The Cantos”, sua obra-prima no século XX) do Canto ou Rapsódia nº XI da Odisseia de Homero.  
“De modo que /Assim que”/ “So that:” -no original do poeta anglo-americano Pound- é um expediente cronológico que parece suspender para relançar a acção a seguir,  uma passagem, uma ligação entre um passado e um futuro, em continuidade, que casou a poesia narrativa de Homero e a poesia lírica da Idade Média (3) 
. 
Por seu lado, o versículo inteiro e último de Actos é essencial para essa ligação, de um passado, de uma história que ainda decorre e do futuro. Parafraseando um verso célebre de Miguel Torga (do poema Dies Irae), todo o futuro está neste dia de hoje do versículo. 
Crepúsculo, aparente, e Alvorada, apenas duas palavras com as quais podemos qualificar o versículo 31.  
Mas é exactamente nas palavras que a continuidade e o futuro se perfilam, na afirmação final do autor  evangélico sagrado, que as coisas pertencentes ao Senhor Jesus Cristo estavam a ser ensinadas, propagadas, “sem impedimento algum”.  
Teremos de socorrer-nos do Novo Testamento Grego (4) e pôr em relevo os dois vocábulos finais:  parrêsias, akôlutôs. 
O que significam dá-nos a medida, o primeiro, de uma abertura de par em par pela qual se entra com ousadia; o segundo, que tal entrada e caminhar não têm obstáculos permanentes nem absolutos. O versículo derradeiro dos Actos dos Apóstolos é um final aparente que contém um princípio contínuo em si mesmo.  
Sendo história humana estaria limitado ao tempo, anos, meses, horas, segundos, mas é História de Deus. 
Não com o rigor da disposição cronológica das cartas paulinas no NT, que não existe,   mas pelo posicionamento tradicional no Cânone, a epístola aos Romanos não sendo a primeira que ele escreveu e tão pouco a que redigiu na sua prisão na cidade imperial, é o seguimento natural do Ensino teológico concernente ao Reino de Deus e ao Evangelho de Jesus Cristo.   
A carta aos Romanos é considerada mais Tratado de Teologia do que Epístola. E assim é que poderíamos ligar, com alguma liberdade respeitosa,  o versículo 31 de Actos aos versículos 1 e depois 16 do cap. 1 de Romanos. E temos a razão da continuidade.  
A raison d'étre da pregação do Evangelho de Deus é a História da Igreja.  
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(1) “Estudos sobre a Palavra de Deus”, Depósito de Literatura Cristã, 1987 
(2) Revista “O Obreiro”, nº 26, Janº/Marº 1984, CPAD; e “Bara-Cadernos Culturais, III”, s/data 
(3)  A Odisseia, Homero, Canto XI, Biblioteca Editores Independentes, pág.180 ss, trad. Frederico Lourenço;  “Os Cantos”, Ezra Pound, Editora Nova Fronteira, pág. 21 ss, trad.José Lino Grunewald. 
(4)  Novum Testamentum Graece, Nestle-Aland 
(Texto a sair na revista "Novas de Alegria"