Thursday, July 27, 2006

Filmes numa sociedade cristã (e livre)

Há apenas cinco décadas atrás pensava-se que o cinema, dada a sua índole cultural, não se impunha a si próprio a obrigação de comunicar factos nem verdades. Como é exigido aos mass media em geral. O cinema era Arte, a designação comum em que se estruturava a ideia sobre esse meio de comunicação.
Com efeito, estudado como tal esse veículo da comunicação de massas é um instrumento para apoiar o imaginário, de um nível mais correcto ao mais torpe, seja através das stars (actrizes), dos astros ( os actores mediáticos), das temáticas diversas do entretenimento ao educacional, da ficção ao documentário, das obras literárias transpostas para os ecrans, até do endeusamento das políticas e das obras dos grandes ditadores do século 20, na Alemanha Nazi ou no regime de Estaline.
Nos primórdios do cinema, as pessoas sentiam-se fascinadas pela magia de verem imagens a moverem-se de um lado para o outro. O primeiro conjunto de imagens em movimento, universalmente conhecida, data de 1895 e tinha o título Sortie des ouvriers de l'usine Lumière.
Poderia ter marcado o cinema como meio de expor a realidade social, no século 19. Mas não, o que iria advir do cinema seria o sonho.
Sem dúvida, tonar-se-ia numa comunicação de mitos, num estudo feito em 1968 afirma-se que «99,44 por cento dos filmes feitos na América e igualmente no resto do mundo -desde o Grande Assalto ao Comboio, o primeiro «western» feito em 1903- serviram para comunicar mitos.»
A América que tornou essa arte cinética em indústria, também lhe definiu as regras no passado, baseando-se e bem na sua ancestralidade assente no puritanismo religioso e evangélico. Nas primeiras décadas do século passado, um organismo estabelecia o Código de restrições morais, não se poderia abordar temas como o divórcio, o aborto e as misturas raciais.
Hoje existem razões mais fortes para pensar que não seriam despiciendas de todo algumas restrições, quando a indústria cinematográfica entra em áreas como as da religião, das confissões religiosas e do culto divino.
À excepção de uns poucos filmes de rigoroso carácter histórico-bíblico (destaco o pacífico Os Dez Mandamentos, de Cecil B.de Mille, 1956; e o controverso O Evangelho Segundo Mateus, de Pasolini, 1964, e.g.), outros foram realizados, na América e na Europa, sobretudo, que subverteram a ideia da ética, da liberdade religiosa, até do espírito dos direitos constitucionais ( liberdade de consciência) no que concerne ao nosso pensamento e maneira de sentir o sagrado.
E a década de 70 que já produzira coisas como a peça musical Jesus Cristo Superstar, abriu a partir do final as suas portas a um cinema de contra-cultura religiosa, digamos assim, que marcou os anos 80 com uma reescritura da História Cristã, do seu capítulo mais importante, a Paixão de Jesus Cristo e a superveniente Ressurreição.
Salvo melhor opinião, o mais mediático e controverso foi o filme A Última Tentação de Cristo, realizado em 1988 por Scorsese ( não coloco em paralelo o francês Je vous salue, Marie, de Godard, 1985, uma metáfora do dogma da Encarnação para o mundo moderno).
Em A Última Tentação… coloca-se em causa a perfeita humanidade de Cristo, objectivando-O sob a lente de uma comum humanização, privilegiando a instância terrena de Jesus, que «é» um carpinteiro que vive um grande dilema, pois é quem faz as cruzes com as quais os romanos crucificam seus oponentes; erradica-se também o dogma da Ressurreição, e quando se acentua o fenómeno da tentação, será mais do foro da dúvida sobre a missão redentora do que da alegada atracção física por Maria Madalena, ou do seu olhar sobre o seu possível futuro, casado e com filhos, optando pela vida sossegada dos homens.
Será também a dialética da tentação do Jesus do filme sobre a verdadeira identidade da sua natureza. Scorsese mantém, no entanto, na atmosfera do filme a possibilidade da divindade de Jesus, mas é evidente a característica redutora do argumento a um Cristo totalmente humano extraído do romance do grego Nikos Kazantzakis.
De resto, trata-se também de uma paradigmática incursão no domínio da ficção, a repetir alguns evangelhos gnósticos que hoje se mediatizaram.
Um outro filme menos mediático, da área do cinema alternativo ou de autor, é o Jesus de Montreal. Em sintese é um filme que segue a lógica da crítica social urbana do nosso tempo, menos do que a crítica religiosa. Todavia, ao colocar toda a encenação na urbanidade de uma cidade como Montreal, no Canadá, isto é, um cristo metido nos problemas quotidianos do homem moderno, da sociedade contemporânea decadente, ao mesmo tempo põe-se em causa a ética, a moral, a teologia, o dogma cristão. Designadamente, propõe-se no filme uma caricatura da ressurreição de Cristo, sob o prisma da ciência: o actor que faz a personagem de Jesus doa seus órgãos para transplantes, e isso «é» a ressurreição.
Releituras ao sabor de ventos «doutrinários» sincretistas, reescritas pós-modernas dos Evangelhos, foram muitas e várias depois dos 80.
Finalmente, faz hoje algum sentido perguntar-se o que tem feito a cinematografia pela religião, designadamente pelo Cristianismo.
Face a um filme tido por quase pregação evangélica, como o mediatizado e recomendado em algumas círculos cristãos A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, em que o sadismo ultrapassa todo o comedimento santo dos Evangelhos na exposição da paixão e morte do Amado, deve-se perguntar, sim, se é lícito usar os Evangelhos a fim de os reescrever com sensacionalismo. Um erro que se cometeu, sem dúvida, foi o de diabolizar um meio que estamos hoje a aproveitar até à exaustão, mesmo com filmes tipo gospel.
É que estamos involuntariamente a ultrapassar a excessividade da formulação do paradigma do Marshall McLuhan: «The Medium is the Message» (1967), o Meio é a Messagem, onde se vê que o simples meio ou canal se converte na própria mensagem.

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