Papéis com apontamentos de um percurso de cinquenta anos de pensamento evangélico, desde 1964. Este Blog não respeita o Acordo Ortográfico
Friday, November 21, 2008
O Peregrino, romance de conduta
O Peregrino não é um poema nacional, daqueles que referenciam uma literatura como O Paraíso Perdido, Folhas de Erva ou Os Lusíadas. É, no entanto, um tratado épico da vida e da viagem agónica do Cristão.
Trata-se da efabulação da conduta desta personagem peculiar – o Cristão-, que ultrapassa os próprios catolicismo romano e protestantismo.
Simplificando as coisas, é uma mistura enciclopédica repleta de rótulos morais, de conduta ética, moral, social, religiosa, não se referindo estritamente ao passado.
No actual pós-modernismo ainda é capaz de causar perplexidades? De abrir fissuras na alma humana, que é às vezes um deserto? De estar para além dos livros de auto-ajuda? Sem dúvida, e não apenas nos meios cristãos, sobretudo evangélicos, mas nos domínios eruditos da história da literatura universal.
Não pensando escrever um romance, João Bunyan criou, contudo, um universo literário em que elabora personagens para a Fé e reune as realidades com as suas visões como autor. Por essa inesperada forma e conteúdo foi considerado o maior ficcionista inglês do século XVII. Na escrita do seu livro, Bunyan incluiu a totalidade de uma vida inteira de observação apaixonada dos homens e das mulheres, e a tal dimensão chamar-se-á universalidade, cosmovisão, romance psicológico, etc. Neste âmbito, está estruturado no plano vertical, ou seja, vai das profundidades às alturas do recorte psiciológico das suas várias personagens, na vivida galeria de tipos que criou.
Um original historiador das Literaturas como é o autor de O Cânone Ocidental, Harold Bloom, escreveu «que as visões de Bunyan actuam sempre sobre o narrador». O que nos parece querer dizer, salvo melhor opinião, que a experiência narrada em A Progressão do Peregrino foi de ambos, muito mais do crente que do romancista.
Desde a abertura do romance até ao momento decisivo para o qual a acção é conduzida, estamos diante de um narrador-personagem nada neutro « E, no meu sonho, alonguei a vista por toda a extensão do vale», que comenta, de forma metafórica, a fuga à ira vindoura, « o seu olhar desvairado volvia-se para um e outro lado, como em busca de um caminho para fugir », e o percurso de uma vida que começa com a conversão a Cristo, e o trajecto da carreira cristã dificultada pelo ambiente circunstâncial mundano, «Esta furiosa luta prolongou-se até perto do meio-dia, hora em que se esgotaram as forças de Cristão, que, por causa das feridas, ia enfraquecendo cada vez mais. Apolião não deixou de aproveitar esta vantagem…» (1)
É, por isso, The Pilgrim’s Progress, a crónica do homem crente que atravessa todos os tempos desde o Novo Testamento. E o padrão literário sobre o qual o livro se estruturou foi a alegoria, mas tratada com tal realismo que a transfigurou em romance.
Com efeito, foi escrito a partir de um padrão bíblico como uma alegoria religiosa, como um panfleto ou um sermão, escreveria Walter Allen na panorâmica histórica O Romance Inglês (2). E para este antigo catedrático, essa panorâmica inicia-se justamente com o Pilgrim’s Progress, o que assim eleva o romance de Bunyan ao patamar das obras fundadoras.
Em Portugal foi traduzido e editado pela Livraria Evangélica, em 1913, com certeza pela primeira vez, sob o extenso e significativo título O Peregrino ou a viagem do cristão à Cidade Celestial debaixo da forma de um sonho.
Há nesta obra um padrão definidor da sua origem, da sua base de construção literária. Esse padrão foi a Bíblia, designadamente a tradução de John Wycliffe, no século XIV, e, posteriormente, a de Tyndale que a popularizaram, tornando-a acessível. Tanto ao povo como a Shakespeare foi dada a oportunidade de ler a Bíblia, como foi dada a possibilidade de ler um livro, O Peregrino, conduzido por ela e que ao mesmo tempo a introduzia na literatura e aplicava na viagem do ser humano e do crente, neste mundo.
O PADRÃO
O Peregrino é por assim dizer uma aplicação hermenêutica na forma da ficção de um tipo de literatura, o romance, que nascia na Inglaterra depois do teatro de Shakespeare e a par da poesia considerada moderna (Romantismo), cujo fundador apontado por muitos foi Woordsworth.
Ao situar todo o seu pensamento em referência à Bíblia, é dotado de um sentido agudo da narratividade, do ritmo romanesco e, simultaneamente, da construção dramática. Isto explica o seu sucesso ao longo destes três séculos.
O padrão teve por base as leituras de Bunyan, e, assim, dentro do próprio romance baseou na leitura de livros edificantes sobre moral e da própria Bíblia, o ponto de partida da personagem, o Cristão, para todos os efeitos um anti-herói. De facto, lemos na pág.7 que a personagem procurava «na oração e na leitura lenitivo para tão indescritível dor.»
A personagem da obra-prima de Bunyan, como um anti-herói, marcha contra-cultura, estabelecendo uma comparação literária por contraste. Poderia ser, sem dúvida, o anti-Quixote, colocado nesse enredo dos mais antigos da literatura, a Viagem. Há algum humor pícaro sub-reptício no conteúdo do romance de Bunyan, mas não excessivo, contido dentro das balizas rigorosas do sentido espiritual. O Quixote lutou contra os gigantes (moinhos de vento), o que transporta em si a ironia da imaginação e da ilusão de óptica; o Cristão luta contra o Apolião, que é uma figura de pesadelo, um monstro; e, no decurso da viagem, cruza-se com figuras realmente irónicas: o Loquaz, o Próprio-Interesse, o Amor-ao-Dinheiro, o Volta-Atrás. E compara (na pág.154) a ingenuidade a «um pinto mais esperto que foge ainda pegado à casca ».
Ao começar com uma alegoria, vai abrir o caminho e preparar o leitor para uma sucessão de alegorias. O narrador Bunyan, pregador baptista no período da restauração dos Stuarts que privilegiavam os anglicanos e que por isso foi perseguido e preso, refere-se assim à sua prisão: «caminhando pelo deserto deste mundo, parei num lugar onde havia uma caverna». Nela adormeceu e teve um sonho.
O ENREDO
À estrutura narrativa do conto ou do romance, chama-se enredo. O enredo d’O Peregrino não é amplamento aberto, isto é, não se trata de uma literatura popular, mas, também, não é de todo uma obra fechada nem tão-pouco esotérica, só inteligível pelos conhecedores da Bíblia. O seu realismo é compreensível porquanto fala da vida do homem e da sua vital relação com Deus. Mas nem por isso é um livro místico.
Desconstruindo a complicação onírica que reside nos sonhos, e que séculos mais tarde Freud viria a explicar, sem misticismos Bunyan coloca os leitores perante o seu sonho de autor-narrador com o sonho da sua personagem. A estrutura do romance é toda ela o sonho que se torna realidade, pelas vivências e pelo discurso todo bíblico.
Criou uma linguagem nova, justamente porque no entendimento da critíca literária não estava esterilizado pela cultura, como p.ex. John Milton, João Bunyan tirou partido da sua incultura, as suas observações são o fruto da pureza cristã e iluminada pelo Espírito que estava nos seus olhos, com que viu a realidade do homem já considerado moderno, a caminho da angústia, da solidão e do desamparo espiritual.
Problemas que o existencialismo cristão de Kierkegaard estabeleceu em definitivo dois séculos depois de Bunyan.
Este inventa palavras, descreve paisagens, fixa pormenores, faz diálogos paradigmáticos, alegoriza a viagem do homem crente em luta permanente contra o pecado, tudo isso ao serviço da alegoria torna a sua obra realista, contemporânea e autêntica.
Foi como se tivesse ouvido uma voz do céu a dizer-lhe escreve a visão, e esta era a realidade estruturada num padrão único, que Bunyan acabou por criar dando inclusíve início ao romance inglês, colocando o percurso de O Peregrino nesse campo e muito para além dos chamados conduct books, ou livros de cabeceira que o puritanismo e o quakerismo promoveram.
Bunyan faz também integrar na estrutura do seu romance, o enredo comum à época, as Viagens. Em O Peregrino, porém, o autor faz o seu anti-herói partir de uma cidade alegórica: a cidade do Mal, de onde foge, rumo à cidade de Deus ou Cidade Celestial.
Aconteceu o mesmo na vida do autor, que teve uma juventude dissoluta até aos vinte anos. Com esta idade casou com uma jovem fortemente piedosa, esta levou na bagagem literatura devocional, o que contribuiu para converter Bunyan num pregador de sólido arcaboiço moral, que abriu toda a sua alma para os valores puritanos. Fê-lo com convicção e com o risco da própria vida, ao contrário do seu sucessor imediato no romance inglês, Daniel Defoe, que possuia apenas um cantinho na sua alma para esses valores, apesar de ter escrito Family Instructor- uma temperada ficção em tom religioso na qual o autor do Robinson Crusoé dá exemplos de moral aos membros da família.
No meu entender, Crusoé trata da epicidade da solidão, numa ilha transformada em habitat. Ao contrário, o Cristão de Bunyan é o épico da vida peregrinada entre outras gentes, outras vozes, neste mundo, de um modo que chega a ser fantástico.
ÉPICA FANTÁSTICA
A épica fantástica propõe-nos a construção de um mundo paralelo no qual a narrativa se centra em relatos que devem reunir dois elementos essenciais: devem ser colectivos, sobre povos, hábitos, condutas morais, e devem possuir grandeza heróica. Teoricamente aplicável hoje ao romance fantástico, estas características não faltam a O Peregrino, sobretudo tomando em linha de conta o século XVI do dealbar de um tipo de literatura como o romance.
O universo e as personagens alternativas que João Bunyan nos propõe em O Peregrino, não se conheceram antes nas tradições orais, nem estão presentes nas posteriores literaturas, mesmo naquelas que fizeram do fantástico a estrutura da sua narrativa, como a literatura sul-americana da segunda metade do século XX.
Todavia, a épica fantástica pode ser descoberta no romance, onde os relatos são heróicos e nos colocam perante o enfrentamento entre o Bem e o Mal, mas sem magia. E essa luta já vem de um «lá longe», de antes da chamada idade da água.
E quando essa luta universal entra no domínio do real de uma vida, no seu quotidiano, ainda que a partir de um sonho, e se estrutura num romance de vida que tem de facto existência, a vida do Cristão em qualquer tempo, é assim a realidade a entrar na ficção. Ainda que através da mais estranha das proveniências e pela mais inesperada das formas. Através de uma obra-prima chamada O Peregrino, que une a ficção e a experiência.
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(1) - Págs. 82, 15 e 78, respectivamente. «O Peregrino, A Viagem do Cristão à Cidade Celestial». Imprensa Metodista, Brasil, 7ª edição, 1955.
(2) –O Romance Inglês, Walter Allen, Livros Pelicano, Ulisseia, Lisboa, 196?
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