Thursday, March 18, 2010

As costas de Deus

«Rogo-te que me mostres a tua glória», solicitou Moisés a Y'hôvâh, numa temperatura espiritual em crescendo que o encorajou, depois de estar com o Senhor, de Lhe falar face a face e ter ouvido que a «presença» divina subiria com ele e com o povo. Lemos no livro do Exôdo, 33.

E o diálogo, na verdade mais monólogo divino que diálogo, que se estabeleceu seguidamente, integra-se numa das cenas mais misteriosas descritas no Velho Testamento. Um escol de comentadores e hermeneutas teológicos, da linha fundamentalista, num trabalho de síntese com o Comentario Exegetico y Explicativo de la Biblia, lograram expressar o estado espiritual e psicologicamente motivado de Moisés ao escreverem que «ele teve, para seu consolo e alento, uma manifestação explêndida e completa da majestade divina, não no seu brilho sem véu, mas até onde admitiria a debilidade humana.»

Houve uma certa inocência no pedido de Moisés. Não sabia o que estava a pedir.
Moisés no plano restrito da história, da sua história e do povo de hebreu, estava a pedir a eternidade, a figura real da eternidade, o Absoluto. Queria ver a glória divina.
De facto, não estava a solicitar uma imagem. Depois de ver a sarça, e o fogo no Sinai,
a simbologia, queria ver a Pessoa.

O que Moisés pediu só poderia ser respondido em sentido figurado, por isso o rosto, as mãos, as costas de Deus devem ser entendidas figurativamente. Rosto, mão, costas, uma semiologia teológica para Deus

O autor bíblico Javeísta (como Harold Bloom gosta de lhe chamar em O Cânone Ocidental) só pode cingir-se ao diálogo entre Y'hôvâh e o próprio Moisés; hoje, para esse desiderato de uma alegado encontro com e de uma «visão» consentida do Divino, escrever-se-iam cerca de 245 páginas sobre uma qualquer «Cabana».

O Tópos Preciso
O lugar necessário para a satisfação do pedido de Moisés havia de corresponder não à poética do momento, ver Deus, mas à dureza pétrea da geografia física e à humanidade, isto é, as limitações para conter a totalidade da Glória do Divino, com a Sua presença em plenitude.

O lugar era abrupto, pétreo, montanhoso, uma penha numa das rochas do Monte Sinai, um refúgio, ainda assim, como narra o texto bíblico, um tópos junto da Divindade. O Senhor disse a Moisés: « Eis aqui um lugar junto a mim; ali te porás sobre a penha».

Há outras experiências no Velho Testamento quanto a lugares (tópos) abruptos, sem beleza, nada idílicos nem estrutura poética, nos quais o Senhor dialogou com alguns Servos, o caso de Moisés e o de Elias, numa caverna.

É preciso que seja marcada definitivamente a diferença entre a Presença e o lugar, a manifestação de Deus e o espaço onde se manifesta, a majestade e a limitação.
O Céu, como a habitação divina, e a Terra como pertença temporária do ser humano, não são da mesma substância, um lugar é da matéria, o outro é etéreo. Um lugar pode ser medido, o outro desde a mecânica celeste até ao inefável não o pode ser jamais.

As costas de Deus
As costas de Deus, é um modo de dizer, seriam como a esfera de Parménides, não têm ponto algum localizável aos olhos humanos, são como o próprio Deus, são a Sua eternidade, sem espaço e sem tempo. Deus está cheio do que É. Por falar naquele filósofo de Eléia, não sei se tinha um conhecimento teológio de Deus, mas disse-O como Deus é: Ser-Absoluto. E indagou: - «Como poderia ser gerado? E como poderia perecer depois disso? Assim a geração se extingue e a destruição é impensável. Também não é divisível, pois que é homogêneo, nem é mais aqui e menos além, o que lhe impediria a coesão, mas tudo está cheio do que é.»

À maneira da massa de uma esfera bem rotunda, em equilíbrio a partir do centro, em todas as direções, o Senhor Deus pois não pode ser algo mais aqui e algo menos ali.Mas o autor canónico e histórico do livro do Exôdo, autor em causa própria, foi muito mais simplíce e acessível ao narrar-nos o seu diálogo com Y'hôvâh, referindo que o Senhor se deixaria ver «pelas costas». O próprio termo hebraico dá-nos essa dimensão de um antropomorfismo compreensível ao ser humano, ao empregar a palavra 'áchor 'áchor, a qual quer significar em sentido lato a parte posterior de alguém ou alguma coisa. E não podemos dizer muito mais.

Ver Deus de costas é tudo o que podemos ver dEle, numa perspectiva do Velho Testamento. No Novo esta agonia que sempre acompanhou o homem, ver «o Deus invisível», é eliminada perante a expressa realidade do Filho, como assevera um possível hino cristão primitivo na Carta de Paulo aos Colossenses (I,15-20): «o Filho do seu amor, o qual é a imagem do Deus Invisível, o primogénito de toda a criação».

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