Judas I. tinha um olhar sempre enviesado e isso fazia com que os seus olhos, que esgueirava e fechava levemente ao dirigi-los para pessoas e coisas, ficassem muito escuros.
Somente vários séculos depois se deu por essa particularidade e foi um pintor renascentista que descobriu no seu olhar uma tendência para as sombras.
Ninguém se apercebera da profundidade dessa escuridão, durante aquele jantar, o ponto central onde recaiam os olhares de todos era sem dúvida o prato.
Um prato único, onde o cordeiro e o molho se tornavam pertença de todos, e onde as diferenças, tantas como os feitios dos doze que rodeavam a mesa, seriam as mãos dos comensais, retirando do mesmo prato o que era a comida da páscoa de todos, no seu significado límpido. O mistério daquela que iria ser a última ceia, estava, porém, na frase de Jesus.
-O que mete comigo a mão no prato, esse me há-de trair. - dissera Ele, sem tremor na voz, sem azedume, mas sublinhando cada palavra com uma tristeza que tinia como os cristais nos ouvidos dos díscipulos, como uma inevitabilidade.
Nesse momento, os olhos de Judas I. enviesaram-se, tomaram uma posição de defesa e, de soslaio, ficaram como duas rapozinhas entre arbustos.
Sabia mais do que todos os companheiros, já possuia o peso da traição, nessa última semana a sua vida já vivia de sombras.
A sua vida tinha sido até àquele dia um somatório de hipocrisias, que agora se desnudavam na fronteira entre o amor ao dinheiro e o desamor à missão do Mestre.
Pouco habituado com Jesus, como de resto os demais condíscipulos, a situações limite, o Mestre sempre lhes resolvera qualquer problema, estava agora no fio da navalha. E era a hipocrisia que aflorava no limite, pois conhecendo-se, também perguntara - «Porventura, sou eu, Senhor? -, fazendo coro com a inocência e a estupefacção dos companheiros, que estavam sentados naquela mesa.
Estava ali como no derradeiro acto da sua encenação hipócrita. Já traíra ao receber as trinta moedas de prata e continuaria a trair ao responder ao gesto de amizade e de deferência do Mestre, respeitador dos usos e costumes da Palestina, quando distribuia pedaços de pão ensopados de molho aos seus convidados.
Por isso não pode deixar de receber a frase «o que mete comigo a mão no prato, esse me há-de trair », escondendo os seus olhos no soslaio da sombra, fazendo apenas avançar a sua mão na ponta de um braço que mais parecia uma lança, arremessada ao peito de Jesus, para receber o pedaço do pão da harmonia, que para ele poderia ter sido, mas não foi, que foi o pedaço final da composição do seu carácter de traidor.
A claridade do aviso de Jesus, não o arrancaria do seu refúgio na sombra, apenas lhe fez semi-fechar ainda mais os olhos, gelando-os.
-Ai do homem por quem eu sou traído! Bom seria para esse homem se não houvera nascido.
O hebraismo da frase continha toda a inevitabilidade da profecia e os olhos de Judas I. já não tiveram tempo de recusar fosse o que fosse, nem o seu coração.
Praia de Mira, 8-2003
Somente vários séculos depois se deu por essa particularidade e foi um pintor renascentista que descobriu no seu olhar uma tendência para as sombras.
Ninguém se apercebera da profundidade dessa escuridão, durante aquele jantar, o ponto central onde recaiam os olhares de todos era sem dúvida o prato.
Um prato único, onde o cordeiro e o molho se tornavam pertença de todos, e onde as diferenças, tantas como os feitios dos doze que rodeavam a mesa, seriam as mãos dos comensais, retirando do mesmo prato o que era a comida da páscoa de todos, no seu significado límpido. O mistério daquela que iria ser a última ceia, estava, porém, na frase de Jesus.
-O que mete comigo a mão no prato, esse me há-de trair. - dissera Ele, sem tremor na voz, sem azedume, mas sublinhando cada palavra com uma tristeza que tinia como os cristais nos ouvidos dos díscipulos, como uma inevitabilidade.
Nesse momento, os olhos de Judas I. enviesaram-se, tomaram uma posição de defesa e, de soslaio, ficaram como duas rapozinhas entre arbustos.
Sabia mais do que todos os companheiros, já possuia o peso da traição, nessa última semana a sua vida já vivia de sombras.
A sua vida tinha sido até àquele dia um somatório de hipocrisias, que agora se desnudavam na fronteira entre o amor ao dinheiro e o desamor à missão do Mestre.
Pouco habituado com Jesus, como de resto os demais condíscipulos, a situações limite, o Mestre sempre lhes resolvera qualquer problema, estava agora no fio da navalha. E era a hipocrisia que aflorava no limite, pois conhecendo-se, também perguntara - «Porventura, sou eu, Senhor? -, fazendo coro com a inocência e a estupefacção dos companheiros, que estavam sentados naquela mesa.
Estava ali como no derradeiro acto da sua encenação hipócrita. Já traíra ao receber as trinta moedas de prata e continuaria a trair ao responder ao gesto de amizade e de deferência do Mestre, respeitador dos usos e costumes da Palestina, quando distribuia pedaços de pão ensopados de molho aos seus convidados.
Por isso não pode deixar de receber a frase «o que mete comigo a mão no prato, esse me há-de trair », escondendo os seus olhos no soslaio da sombra, fazendo apenas avançar a sua mão na ponta de um braço que mais parecia uma lança, arremessada ao peito de Jesus, para receber o pedaço do pão da harmonia, que para ele poderia ter sido, mas não foi, que foi o pedaço final da composição do seu carácter de traidor.
A claridade do aviso de Jesus, não o arrancaria do seu refúgio na sombra, apenas lhe fez semi-fechar ainda mais os olhos, gelando-os.
-Ai do homem por quem eu sou traído! Bom seria para esse homem se não houvera nascido.
O hebraismo da frase continha toda a inevitabilidade da profecia e os olhos de Judas I. já não tiveram tempo de recusar fosse o que fosse, nem o seu coração.
Praia de Mira, 8-2003
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