Parece que existem razões para criticar a Nova Versão Internacional (NVI) do Novo Testamento, publicada pela Editora Vida e datada de 1998.
Mas nem todas essas razões serão do âmbito da teologia do Texto Sagrado, mesmo quando o marketing diz que «a tradução da NVI é isenta de interpretações particulares ou denominacionais.» Nem corroboram necessariamente as críticas através das quais algumas Igrejas Evangélicas fundamentalistas afirmam que se trata de uma versão moderna visando «enfraquecer diversas doutrinas como a Divindade de Cristo, a expiação por Cristo e só pelo Seu sangue, Sua morte vicária, etc.etc.»
Ao atribuir-lhe influências que talvez tenham pesado, como a vetusta versão de Westcott e Hort (feita em 1881) e que deu origem ao chamado Texto Crítico, tais razões até acabam por respeitar uma Versão que é produto de «dez anos de trabalho intenso, milhares de horas gastas, por eruditos de diferentes especialidades teológicas e linguísticas».
Com efeito, no aspecto linguístico e das estruturas da frase, da beleza de estilo e de um discurso concordante, é que perante alguns trechos nos quedamos perplexos pela má qualidade desse discurso, nesta tradução para a língua portuguesa. O que felizmente não acontece com outra versão traduzida para a nossa língua na designada A Bíblia para Hoje, mais conhecida por O Livro, da Socidade Bíblica de Portugal, de 2000(?), cujas estruturas da frase estão correctas e são dinâmicas.
A verdade é que à publicação da NVI enquanto linguagem adequada ao entendimento do homem do século XXI, de muitas leituras e que sabe distinguir um bom texto de um mau texto, corresponde uma redacção muito pouco cuidada, no rigor do bom português e na dialogia (em síntese a figura do diálogo que dá vida a uma argumentação), o que qualquer bom texto ou boa obra já não dispensam, nos nossos dias.
A NVI exibe, de facto, alguns défices na sua sintaxe, na sua prosódia, o que não abona a produção de um bom texto comunicacional.
Infelizmente para quem tanto invoca, com razão e, sem dúvida, honestidade, a ciência linguística que nos sublima o legado dos textos escritos remotamente, mas de conteúdo eterno, incorreu-se num mau serviço prestado à natureza dinâmica da linguagem. Esta com certeza que exige actualização da língua, mas não faz pactos com erros de estrutura na sintaxe. O que se comunicou bem no passado não pode tornar-se menos belo e estético no presente, apenas para que possa ajustar-se à comunicação de massa, isto é, a uma divulgação massiva.
A contemporaneidade não pode significar sincretismo, sobretudo no que concerne aos Textos Bíblicos, e jamais o rebaixamento do nível da compreensão da mensagem, «popularizando» a mesma ao ponto de quase a fazer sucumbir a uma actual e infeliz iliteracia.
É o caso de algumas passagens dos Evangelhos em que a narrativa está ordenada com um défice de concordância.
A Concordância Verbal
Como se sabe, trata-se da solidariedade entre o verbo e o sujeito, e nas suas regras gerais, os autores da celebrizada Nova Gramática do Português Contemporâneo, Profs. Celso Cunha e Lyndley Cintra, 1984, vão à concordância do verbo com o número e a pessoa e o sujeito, vão até aos casos particulares dos pronomes e da regência dos verbos.
Os Exemplos Infelizes da NVI
Salvo melhor opinião, as divergências no tratamento vocativo dos protagonistas de alguns trechos dos Evangelhos não condizem com o modo das relações pessoais, nem tão-pouco com o original grego, de cuja origem linguística o Novo Testamento parte e os autores da NVI reivindicam, e bem, o ponto de partida na fidelidade ao original.
Eis alguns desses exemplos:
-Mateus, 3. 14,15 : «Eu preciso ser baptizado por ti, e tu vens a mim? Respondeu Jesus: «Deixe assim por enquanto; convém que assim façamos, para cumprir toda a justiça». Acresce que o verbo grego aphes é conjugado na 2ª pessoa, activamente, ( pelo que devia ser deixa e não deixe) .
-Mat 4. 6,7: «Se tu és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo.» Jesus lhe respondeu:«Não tente o Senhor seu Deus».
-Mat 4.9,10: E (o diabo) lhe disse: «Tudo isto te darei, se te prostrares e me adorares». Jesus lhe disse:« Retire-se, Satanás! Pois está escrito: «Adore o
Senhor seu Deus e sirva somente a ele.» Do modo como está redigida a reconstrucção da frase, oriunda do hebraico Shemá, pode inferir-se que a mesma parece querer exortar Satanás a que «deve adorar e servir» o Senhor. O que é, no mínimo, uma impossibilidade teológica.
-Mat 8.21,22: Outro discípulo lhe disse: «Senhor, deixa-me primeiro ir sepultar meu pai.» Mas Jesus lhe disse: «Siga-me, e deixe que os mortos sepultem os seus próprios mortos.»
Procuramos aqui, como se percebe, o paradigma do diálogo de Jesus com três personagens diferenciados. Um histórico, um ente espiritual, e um desconhecido. E não entendemos por que razão o tu se torna você, num cerimonial não adequado.
Outros exemplos de outros tantos aspectos paradigmáticos, não deixam de nos causar alguma perplexidade.
-Marcos 1. 40,41: Um leproso aproximou-se dele e suplicou-lhe de joelhos: «Se quiseres, podes purificar-me!» Cheio de compaixão, Jesus estendeu a mão, tocou nele e disse: «Quero. Seja purificado.» Imediatamente a lepra o deixou, e ele foi purificado.
O referencial forte do verbo katharídzo (limpar, purificar, declarar ritualmente aceitável), tanto permite a voz imperativa «fica limpo», como «purificado», mas é a forma de construir a oração da narrativa em discurso directo que lhe confere o ênfase e a emoção do texto.
Salvo melhor opinião, no texto da NVI, há uma frieza de discurso, que quase se revela neutral. Parece que o tom da narrativa acentua uma declaração formal por parte de Jesus, como que a declarar ritualmente aceitável o leproso, e não a acção dinâmica de Jesus a operar o milagre da cura através da sua palavra poderosa e declarativa. Para além de uma certa impessoalidade no trato, o que nunca foi uma atitude de Jesus mantendo à distância socialmente os necessitados e doentes.
- Lucas 13.23-25 : Alguém lhe perguntou: Senhor, serão poucos os salvos? Ele lhes disse: «Esforcem-se para entrar pela porta estreita, porque eu lhes digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão. Quando o dono da casa se levantar e fechar a porta, vocês ficarão do lado de fora, batendo e pedindo: «Senhor, abre-nos a porta». Neste exemplo de ausência de concordância, os pronomes pessoais confundem o díalogo. Nem precisamos do grego légõ ýmin, basta que consideremos as pessoas gramaticais que nos são indicadas para a compreensão de um colóquio: «com quem se fala» são o tu e o vós; e «de quem se fala»-ele, eles. O primeiro caso gramatical é aquele que se adapta ao nosso texto.
- João 3. 7: Não se surpreendam pelo fato de eu ter dito: É necessário que vocês nasçam de novo. De facto, para este trecho há opiniões que dizem que a língua grega implica um plural. Em nossa opinião, após a análise de outras versões, até mesmo da Holy Bible, New Intenational Version, da «New York International Bible Society», de 1978, ou João está a narrar o que Jesus Cristo já havia ensinado a um conjunto de outras pessoas, e, portanto, trata-se de uma transcrição em discurso directo, ou se está a forçar a gramática grega do texto original a algo que ela não pretendeu estabelecer.
O facto é que no NT grego o verbo dizer e o pronome pessoal, é referencial à 2ª pessoa do singular, na primeira parte do versículo ( «Não te admires de eu te dizer »). Já na segunda parte, o pronome está no plural. Jesus relembra o que já teria dito em colectivo: «Necessário vos é nascer de novo »?
Não podemos afirmar isso, podemos apenas relembrar que no início da conversa entre ambos foi o que Jesus começou por afirmar «Se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.» Mas o mais provável é ser uma assertiva de carácter universal, abrangente e por essa razão ( na língua grega) gramaticalmente impessoal.
Finalmente, relevo da intenção da NVI o pretender alcançar uma «linguagem relevante ao coração do homem do século 21», com reverência e comprometimento, embora críticas menos benevolentes, em matérias doutrinárias, proponham que há nesta versão ataques e diatribes contra a genuína Palavra de Deus.
1 comment:
Caro confrade,
É com satisfação que vejo que continuas nestas lides da escrita e a publicar. Fazes bem. Com tanto lixo a percorrer os caminhos da Net, é sempre bom encontrar uma lufada de ar fresco, trazendo ínsita em si a brisa do criador sopro divino. Além disso, se outros se deixam levar pela preguiça (ah pecado mortal tão apreciado pelo humano), entre cujo número por vezes me encontro, não te restará outra saída senão a decisão de perseverar nesta labuta cuja maior gratificação não é o lucro material mas a satisfação de a tua alma se sentir livre.
Aproveito para te desejar e a todos os teus um santo e Feliz Natal, em toda a verdadeira acepção da palavra. Que 2009 não seja de modo de nenhum de crise na tua criatividade.
Um apertado abraço
Jorge Pinheiro
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