Monday, April 06, 2009

O Anúncio

Basicamente é um diálogo. E todos sabem que os diálogos podem ser sinuosos, conter alçapões e esquinas desconhecidas, onde podem aguardar-nos os calafrios.
Várias imagens, como a ironia, a falta de ética, a falácia da solidariedade entre os homens, o incensar a mentira, o egoismo, a crítica aos que aguardam por salvação exterior à sua própria iniciativa, o eterno sebastianismo, etc., etc., nos podem ocorrer perante este:

«Então, que se passa?»
«Sabes lá, dinheiro!»
«Não me digas! »
«Verdade!»
«Não te preocupes. Lembras-te quando fizeste 30 anos? Nesse dia fui ao ...e abri uma conta poupança em teu nome. Todos os mêses depositei religiosamente 25 €. E tens lá um monte de dinheiro à tua espera»
«Estás a dizer-me que foste ao...e depositaste, etc.etc. A sério? Fizeste isso por mim?!»
........................................
«Não! Eu estava a gozar!»

Não havia necessidade de dizer coisas como estas («Triste mesmo…mais triste é o dinheiro que actrizes de renome estão a ganhar com esta publicidade misera e claro: elas é que se estão a rir na nossa cara… finalmente um anúncio à imagem do Bidarra: cínico e pouco solidário», In (www.ptfolio.com/2009/03/05/) que li em comentários sobre este anúncio a um tipo de poupança e de apelo a que devemos pensar em nós. Por quê?

Porque se corre o risco de transformar a peça em algo que navega em águas da filosofia, por causa do cinismo, que pode até não se descolar de um sentimento religioso, por causa da falta de ética perante as circunstâncias actuais. E não merece tanto!

Basta a encenação, as falas, certas expressões, e o recurso ao advérbio de modo «religiosamente», como resquício de uma certa moral religiosa, que é ancestral na hipocrisia com que Portugal vive o seu catolicismo romano, como uma pseudo nota de seriedade, que é incomparavelmente menos séria que a frase «sou ateu, graças a Deus!».

Dizer «Pensa em ti» é basicamente o ponto de partida para o tal diálogo. Como um dos elementos da retórica, o diálogo que Mikhail Bakhtin desenvolveu para o dialogismo, é figura que reproduz em falas diversas as ideias ou sentimentos das personagens.

Sendo o mote para a campanha criativa publicitária «Pensar em Ti» basicamente um diálogo, é natural que, segundo a tais regras da retórica, evidencie a polifonia que todo o discurso dialógico possui.

-De um lado, temos a apreensão perante a crise, a necessidade, o vazio financeiro e a falta de horizontes, a lamúria perante a situação em que o país, a Europa e o mundo estão enterrados;
-tudo centrado, curiosamente, num casa de chá (ou restaurante?) de classe média;
-do outro lado, temos a ironia, a promoção de uma falsa segurança, a frase antagónica, a antítese como a substituição de toda a esperança que na interlocutora acaba por se desmoronar.

No geral, esta peça publicitária basicamente promoverá a «mise-en-scène» dos afectos, o realce da mentira ? O quê, para além do marketing?

Gil Vicente e Shakespeare já trataram assim as relações humanas, com base na ironia, enquanto ingrediente do drama como a sátira, que acaba por ser o resumo eufemístico para dizer desprezo pelo nosso próximo.
(Crónica a sair no Diário de Aveiro)

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