Thursday, April 16, 2009

Os Meninos da sua Mãe


Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe.»
Fernando Pessoa

E quando chegou perto da porta da cidade, eis que levavam um defunto, filho único de sua mãe, que era viúva.
Lucas, 7, 12


De acordo com um documento publicado por CHRISTIAN APOLOGETICS & RESEARCH MINISTRY, o resultado da cosmovisão secular pode ser vista ao nosso redor. “A televisão tem se degenerado tornando-se um "bordel" de violência, pornografia "leve", seriados que destroem a família, comerciais que apelam para a gratificação imediata dos prazeres, e desenhos animados que são cheios de violência, ocultismo, e desobediência aos pais. Eles frequentemente retratam pastores como psicóticos, padres como "pedófilos", e pessoas religiosas como ignorantes, inseguras e fanáticas”

Diferente é a cosmovisão de origem cristã sobre a morte e como considerá-la que o evangelista Lucas e o poeta Fernando Pessoa possuíam.
O interessante da cosmovisão cristã reside no fato dela ser simples, como disse C. S Lewis, dito assim poderíamos aceitar que tanto Pessoa como o autor bíblico Lucas, lendo os seus textos acima, observaram a morte sob esse ponto de vista da cosmovisão cristã. Mas Lucas era um cristão, Fernando Pessoa era-o noutro sentido, era um crístico.
Mas ambos - um como narrador bíblico, outro como sujeito lírico - escreveram sobre uma morte desajustada da cronologia, imprópria, diríamos por se tratar da morte de um jovem. Ambos nos apresentam uma morte desumana.
A desumanização da morte
Há pelo menos dois ou três períodos, distanciados uns dos outros, na história da humanidade do Século XX em que o homem desumaniza a morte do outro.
A Grande Guerra da qual fotografias mostram a ruína da carne humana de par com os escombros.
A Guerra Civil Espanhola que foi a primeira guerra a ser testemunhada (coberta) pelos noticiários, relacionando bombardeamentos por parte dos nacionalistas de Franco como o de Guernica com o castigo pela «rebeldia» democrática dos republicanos.
A IIª Guerra Mundial em que os campos de extermínio nazi só por inadvertência histórica e excesso de vanglória dos carrascos deixaram para a posteridade fotografias de escombros do que foram homens, mulheres e crianças, desumanizando-os na imagem como o haviam feito as teorias racistas, nas virulentas ideias anti-semitas de Hitler ou Julius Streicher.
As bombas de Hiroxima e Nagasaqui que revelaram como o brilho de mil sóis pode não apenas matar, mas reduzir as vítimas a sombras.
E a moderna guerra de bombardeamentos e desflorações que a América travou no Vietname, entre corpos estropiados e queimados sob o napalm e os outros corpos desumanizados, como conteúdo impessoal dentro dos famosos sacos de lona preta?

Dir-se-ia que a desumanização da morte funciona diante dos nossos olhos, hoje mais do que nunca nos meios de comunicação, através da fotografia e das imagens.
«Captar uma morte que está a ocorrer e embalsamá-la para todo o sempre é algo que uma câmara pode fazer» escreveu Susan Sontag.
A seu modo e com os instrumentos lexicais que possuíam, o evangelista Lucas e o poeta Pessoa embalsamaram para todo o sempre um momento da morte. No caso do poeta autor da Mensagem, a morte ficou para sempre qualificada como a morte, sem remédio, de um jovem soldado na guerra. No texto bíblico, a narratividade aponta para o milagre da restituição da vida através do prodígio da ressurreição.

Lucas, 7, 12-15
Este Evangelho dirigia-se a Teófilo, de um modo particular, e no sentido universal a leitores cristãos de cultura grega, costuma dizer-se que Lucas era um artista, como se vê pela linguagem usada, pelo cuidado em explicar a geografia e os usos da Palestina, pela omissão de discussões judaicas e pela consideração que tem pelos gentios.
Particularmente no texto em causa, estabelece o encontro da Tristeza com a Alegria. Como corolário estabelece o encontro da Vida com a Morte. Neste sentido a sua narração tem delicadeza e sensibilidade.
É com familiaridade que afirma ser o defunto o filho único de uma viúva.. Nesta linguagem simples do amor materno acerca de uma mulher desamparada agora segundo os costumes judaicos, o evangelista pinta com traços sucintos mas carregados da cor da tristeza toda a mágoa que avassala aquele coração de mãe e de viúva sem amparos. A luz que incidia no rosto da mãe marcava-lhe a cor da tristeza, e quase vemos essa repartição da luz solar da tarde no escuro das roupas e dos corpos. Toda a narrativa assume o tom da tristeza fúnebre. Até certo ponto é um relato cinzento. Parafraseando A.Camus, tudo o que aquele cortejo fúnebre representava, colocava-o «a meio caminho entre a miséria e o sol».
O médico-evangelista sublinha antes do momento de alegria e de vida protagonizado por Jesus Cristo, toda tristeza do evento ao dar uma identidade, a única que se conhece, ao jovem morto: o filho único de sua mãe.

Filho único ou «O menino da sua mãe.»
No que concerne a Fernando Pessoa, o chamado sujeito lírico- o poeta- centra a sua atenção no «menino da sua mãe». Subliminarmente nos sugere um clima de guerra, e por uma razão de experiência sentimental óbvia, e cronológica também, remete-nos para a Grande Guerra (1914-1917). A «terra-de-ninguém» recolhe à superfície do solo «o abandonado» jovem, que jaz morto e arrefece, apesar de «a morna brisa» que o poeta traz ao enredo/ intriga do poema.
O jovem soldado, na primeira estrofe (quintilha) do poema, é identificado com o único nome possível, desumanizado, o «morto» que, como qualquer outro, jaz. A desumanização do jovem morto é mitigada por uma corporização poética: braços estendidos, olhar lânguido e cego, alvo e louro, e uma farda que o integra e reduz à uniformidade, uma roupagem que o seu próprio sangue ilumina. Conta-nos o poeta: «Raia-lhe a farda o sangue».
Quem é este «menino da sua mãe» e o que o identificava como tal, no belo poema pessoano de uma tristeza contida?
Pertencente ao conjunto dos oito poemas que Pessoa(e os heterónimos) dedicaram ao tema da Grande Guerra, «O menino da sua mãe» tem a intensidade própria da temática e existem nele dois elementos sociais identificadores, que atribuem uma humanidade ao morto. Este carregava dois objectos: «a cigarreira» e «um lenço branco» que o identificariam socialmente, que falavam de uma vida familiar e social.
Mas a mais profunda identidade que Fernando Pessoa lhe confere é idêntica à do evangelista Lucas, é «o menino da sua mãe», é, de facto, um nome, e esse nome a mãe o mantivera até à idade adulta do seu jovem filho.

Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe.»
Uma proposição
Adolfo Casais Monteiro, amigo de Pessoa, escreveu um dia que «sabemos da vida de Pessoa menos, muito menos, do que a respeito de muitos outros, e bem mais distantes no tempo.»
Contudo, supondo a realidade das leituras inúmeras e diversificadas do Poeta que abarcavam linguística, estética, poética( e a poesia inglesa da época romântica), filosofia, religião, a Cabala, a Bíblia, terá Fernando Pessoa captado de uma leitura do Evangelho de Lucas a ideia profunda, de intensidade da compaixão, do «menino da sua mãe»? Ou no dizer de Lucas «o filho único de sua mãe»?

Terá, muito pelo contrário, ido buscar a ideia à metáfora das Mães, no poeta alemão Goethe, que ele apreciava, e nos alquimistas e sábios, que a usavam para falar da «matéria primeira», das formas originárias do Ser- a «mãe»? Para os gregos deusas a quem chamavam Mães, as divindades femininas férteis e as estéreis, de Cícero a Plutarco?
Seja como for, «o menino da sua mãe» é tão intenso e comovente no poema como «o filho único de sua mãe» o é no Evangelho.

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