Sunday, April 04, 2010

A murmuração dos helenistas contra os hebreus


O evangelista Lucas dedica nos seus Actos dos Apóstolos apenas um parágrafoàquele que foi um grande problema, não tanto pelo seu significado e duração, mas porque foi fundacional para a instituição do diaconato na Comunidade cristã de Jerusalém.
«Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos houve murmuração dos helenistas contra os hebreus»- 6, 1

No plano social, as viúvas dos cristãos originários das cidades gregas não eram tratadas com simpatia devida pelos cristãos aborígenes da Palestina, de Jerusalém, da Judeia e da Galileia. Uns e outros eram Judeus. Uns da Dispersão, outros autóctones. Lucas enfatiza com um simples lexema («esquecer»), a causa da problemática questão: essas viúvas estavam a ser desprezadas e esquecidas nas refeições diárias.Este esquecimento está marcado no texto de Lucas com um termo grego (paratheoreo) que induz acção interior e exterior, a negligência dos sentimentos reflectida no descuido do olhar, do olhar por alto, do desprezo.

Aparentemente, parece-nos ser um problema meramente social, com traços de xenofobia, sabendo nós como sabemos que os judeus sempre enraizaram em si uma tendência para a exclusividade, quer religiosa, teológica e, por fim, social. A verdade é que a questão suscitada na Igreja de Jerusalém vai para outro plano. É civilizacional e do âmbito da cultura.
Como divergências de conteúdo transcultural, digamos assim, podem influenciar a Igreja de Deus, temos aqui a prova histórica no relato lucano. Mas tais divergências não foram obra do acaso, nada do que concerne aos Planos divinos na história do homem é por acaso. Contribuíram para o crescimento e expansão da Igreja, foram com a perseguição que a seguir eclodiu a pedra de toque da crise, em sentido teológico e neo-ortodoxo de mudança.
Problemas administrativos
Não apenas pelo facto histórico, mas pelas suas consequências fundacionais, o escritor bíblico regista que o crescimento da obra de Deus começou a ocasionar alguns problemas administrativos, pois o grande número de crentes tornava o governo da Igreja apenas sobre a superintendência dos apóstolos desajustado das realidades.
A expansão numérica era quantitativa, mas era obra do Espírito Santo, o reajustamento a essa realidade teria de ser obra administrativa dos homens dados pelo Senhor à Igreja. O discernimento dos problemas e a aplicação das soluções por parte dos apóstolos foram registados na historiografia da Igreja, tanto por Lucas, autor sacro, como séculos depois por Latourette, na sua extraordinária História da expansão do Cristianismo.
Havia dois grupos nesta queixa, os hebreus e os helenistas, e deste segundo partiu a queixa, pois havia muitas viúvas helenistas que vinham a Jerusalém para encerrar seus dias, e por isso, as vezes enfrentavam dificuldades financeiras grandes, o que fez com que os demais helenistas cobrassem da Igreja o auxílio aos seus pobres – é por norma esta a referência que os vários comentários bíblicos exibem.
A verdade é que tal discriminação poderia ter uma base na acção social condicionada por dificuldades financeiras dos crentes e da respectiva igreja. No entanto, em profundidade observa-se que a capacidade de subsistência financeira e económica da novel igreja em Jerusalém não era desprezível. A Igreja Cristã primitiva não começou com a discussão entre judeus e helenistas sobre a situação de precariedade de algumas mulheres crentes que sofreram o infortúnio de enviuvar, nem começou com a eleição de diáconos; se há uma data da fundação da Igreja, estivesse pessoalmente em Jerusalém ou na Galileia, se existe um início da sua fundação, estão logo após o dia da Ascensão do Senhor Jesus Cristo.
A partir daquele evento, testemunhado pelas esferas celestiais e o mundo dos homens, vemo-la em funcionamento. Actos 1, 8-12, designadamente este último versículo, refere que os «varões galileus» voltaram para a cidade, desde o monte das Oliveiras, e começaram as reuniões cristãs evangélicas, no cenáculo, e iniciaram a perseverança «unanimemente em oração e súplicas, com as mulheres, e Maria, mãe de Jesus, e com seus irmãos.»
A acção social da igreja em Jerusalém seria notada, nos aspectos práticos e espirituais entre os seguidores do Caminho, e sublinhada pelos próprios judeus seguidores de Moisés e da Lei. «Caindo na graça de todo o povo» a igreja crescia.O cronista inspirado, o evangelista Lucas regista os acontecimentos que estruturam a ideia de bem-estar financeiro, de crentes possidentes, com meios de fortuna, propriedades e trabalho fixo, quando nos dá conhecimento do peculiar sistema de «comunismo cristão», exclusivo da igreja em Jerusalém. É verdade que existia um tipo de “comunismo” na igreja de Jerusalém, mas era totalmente diferente do comunismo como o viemos a conhecer historicamente no século XX.Alguém escreveu a propósito da recensão literária ao livro de Johannes G. Vos (1903-1985) com as lições que produziu sobre o Catecismo Maior de Westminster de Janeiro de 1946 a Julho de 1949, in The Westminster Larger Catechism: A Comentary:
«É claro, portanto, que o “comunismo” temporário da igreja em Jerusalém não era uma questão de princípio, mas de contingência em face das condições peculiares àquele tempo e lugar. É extremamente insensato, anti-bíblico e anti-histórico apresentar o estado temporário das ocorrências na igreja de Jerusalém como análogo ao comunismo moderno, ou como um padrão a ser imitado pelos crentes em Cristo de todos os lugares.»

«Todos os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e fazendas e repartiam com todos, segundo cada um tinha necessidade» (2,44,45)
Sistema que preponderou em importância, uma vez que Lucas volta a referi-lo em 4.32.34E faz notar uma evidência que retrata as excelentes condições económicas da igreja: «não havia pois entre eles necessitado algum».
O estado financeiro dos primeiros dias da igreja em Jerusalém adaptava-se perfeitamente ao que se escreveu sobre a história de Israel «se os povos se medissem aos palmos e a economia agisse como motor determinante e exclusivo da história mal haveria lugar para Israel na investigação do Próximo Oriente antigo». Diga-se o mesmo da situação financeira dos cristãos judeus e daquela comunidade cristã.
A população eclesial, por assim dizer, exibiria números de uma grandeza extraordinária, conforme lemos no relato do Evangelista médico e companheiro de Paulo. Note-se que os Actos só nos dão dois números precisos, que podem obedecer mais a uma estimativa do que a um «censo» demográfico de rigor: fala em 3 mil no dia de Pentecostes e 5 mil no capítulo 4, após o segundo discurso kerygmático de Pedro.
Problemas de civilização e cultura
O crescimento traz consigo a crise, porque supõe mudanças. A multiplicação de pessoas precipitou a multiplicidade de culturas. O espaço das novas linguagens alargou-se.
A civilização greco-romana tinha mais mundo para lá das fronteiras religiosas fechadas do judaísmo.
Mas o acontecimento da inclusão desses crentes, homens e mulheres, oriundos das cidades gregas, judeus de fala grega, não podia significar que eles aportavam conhecimento contra o Evangelho, queria dizer apenas que possuíam um espírito mais aberto, culturalmente. Os problemas começavam neste ponto. Abertura de espírito, não outro espírito, nem outro evangelho, nem outro Cristo.Contextualizando com os dias actuais, desde a década de 70 do século XX até hoje, a transcorrer uma década do XXI, existe também o problema das inclusões da Cultura, de uma maior participação nas comunidades cristãs evangélicas de jovens e maiores com licenciaturas, doutoramentos, institutos bíblicos, faculdades de teologia, etc.
Ainda hoje, em alguns meios religiosos, designadamente evangélicos, o tema Cultura parece dimanar directamente de um termo grego hamartia, isto é, pecado. Ou se não, uma porta aberta para pecados sendo o mais comum a alegada falta de «humildade», ou a «imodéstia», ou ser «intelectual».Nos dias da Igreja Apostólica de Jerusalém, o problema estava a crescer nessa área da civilização e da cultura antagónicas ao judaísmo.
Problemas de transculturalidade
Ainda se vivia à sombra do Templo. Para serem «momentaneamente tolerados tinham que continuar a exibir uma piedade estilo judaico», escreveu um dos maiores especialistas da contemporaneidade do ministério e percurso do Apóstolo Paulo, o teólogo belga Lucien Cerfaux.O Cristianismo trazia, no entanto, uma ruptura com a instituição Templo, ruptura já iniciada com Jesus quando expulsou os vendilhões do mesmo, num acto anti-cultural, para os judeus da época e porque aquela Casa teria que ser chamada Casa de Oração.As próprias designações que a cultura popular atribuía então ao ainda não conhecido Cristianismo, a seita dos nazarenos, o Caminho, eram já portadores de algo não assimilável, algo novo.
Os apóstolos de Jesus Cristo já não tinham um linguajar rude, o conteúdo do que pronunciavam trazia espírito e vida aos ouvidos do homem comum hebreu.As mulheres, no plano da transcultura, começaram a ter relevância quando comparadas, nas Cartas de Paulo, com os homens, porque «em Cristo» não há homem nem mulher, mas ambos os géneros são Um n’Ele.
Contudo as resistências transculturais entre a mulher e o homem sempre se fizeram sentir. Um pormenor actual da civilização tailandesa exprime bem essa salvaguarda machista de posições. Na Tailândia as mulheres não podem ocupar quartos do 1º andar num hospital e os homens do rés-do-chão; isso significaria a superioridade da mulher em relação ao homem.
Percebemos, com os dados actuais que temos e as contextualizações devidas, que transculturalmente, na Igreja de Jerusalém, as viúvas gregas fossem preteridas pelas judias, pelo factor da mistura cultural; no entanto, a maravilha reside em que seria criado um corpo de servidores – os diáconos –, homens, para servir à mesa e dessa forma servir as mulheres. Era a superioridade do Evangelho.
Via A Ovelha Perdida, que publicou este inédito.

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