Thursday, September 17, 2009

O lado bíblico da História

A Exposição aos Hebreus tem pouquíssimas marcas do seu tempo, contextualizações e referências contemporâneas(quase todas nos últimos sete versículos) e no entanto tem um capítulo que é uma espécie de sumário do Velho Testamento, uma historiografia da Fé.

Não mostra nome de autor, por evidências internas no texto (5,12-13; 13,23) a garantia de ter sido escrita pelo apóstolo Paulo não é definitiva, nem tão pouco por Pedro (11,7; 13,20), não obstante o que poderia parecer evidente. Também não por Apolo, embora Lutero lançasse por muito tempo hipóteses. Apenas para citar termos empregues que estão na linha de pensamento e expressão, ou referências históricas pessoais daqueles dois apóstolos e autores bíblicos, atentos à estrutura estilística de algumas frases.

Tão-pouco se dirige a alguma igreja territorialmente implantada. Quando se refere a uma, no sentido de assembleia, fá-lo de uma forma universal e, digamos assim, cósmica e espiritual: a universal assembleia dos santos, a paneguris ekklésia.

No entanto, é uma epístola que pode ser designada como historiográfica porque também trata de História, a história do povo hebreu, na perspectiva mosaica, e a referência dos factos da fé dos patriarcas antes da história.

Se o povo judaico tem como livros históricos alguns Livros da Bíblia, logo Sagrados, o cristianismo é uma religião de historiadores, no dizer de um dos fundadores da Escola dos Annales, o historiador francês Marc Bloch, fuzilado em 1944 pela Gestapo.

A História constitui-se por aquele conceito que o seu designado Pai, o grego Heródoto, definiu como tentativa do homem sistematizar o conhecimento das suas acções ao longo do tempo. O que para Heródoto eram sobretudo Pesquisas, e assim as significou. Fossem as acções da intervenção de Deus na humanidade, fossem as dos homens, nas diversas Histórias das civilizações e do Homem.

A intervenção histórica de Deus no mundo, na história dos homens, através da Palavra, dos elementos comunicacionais voz-lógos, está bem reflectida neste prólogo da Epístola:
«Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho.»
Aqui se evidenciam os ecos do passado de uma Lei em confronto com os cânticos alvissareiros do futuro do Evangelho, centrado numa Pessoa, a pessoa divina do Filho.

O que principalmente é feito, é para mostrar como foi importante no passado o sistema Mosaico, que não seria bom ao Cristianismo primitivo na Palestina desprezar, porque do seu valor se sobrevalorizavam as palavras de Jesus Cristo no presente, tornando todo o Evangelho e, digamos, o sistema da Graça melhor, uma palavra especial (adjectivo comparativo, no grego) em toda a epístola, exprimindo a ideia de mais forte e, consequentemente, mais capaz.

Hoje, a Exposição aos Hebreus, apesar do seu anonimato, é lida à luz da Graça divina, como antigamente o foi, por exemplo através dos olhos de alguns dos chamados Pais da Igreja, no período anterior à Patrística. O olhar de Clemente Romano foi um desses, ao escrever a sua epístola não canónica aos Coríntios, tomou de empréstimo frases e inúmeras citações da Carta aos Hebreus.

A História estabelece um diálogo do passado com o presente, a dicotomia do «antigamente» e «últimos dias» reforça o interesse de Deus pela humanidade desde os primórdios do tempo até aos dias da derradeira dispensação, a da Graça, que estamos a viver.

A História desenvolve-se no binómio espaço-tempo, a História Divina traz ao tempo e ao limite do espaço a eternidade, na grande salvação que Jesus Cristo proporcionou aos homens.

A Carta aos Hebreus, numa boa parte de si própria, é essa História da intervenção do Divino no regaço histórico de uma nação, Israel, e de um povo, o judeu, e de uma cultura civilizacional judaico-cristã.
«É na duração da história que se desenrola o grande drama do Pecado e da Redenção, eixo central de toda a meditação cristã» - escreve aquele já referido e incontornável historiador francês.

À história desse grande drama que foi a Queda do Homem, caberia como grandioso e único recurso salvífico, o que a epístola aos Hebreus considera «grande salvação».
«Como escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande salvação »- proclama o autor da epístola, do ponto de vista do significado (da Teologia) e dos factos( da História). Salvação do pecado e do inferno, é chamada de «grande» porque é grande o Seu Autor.

«O sentido é que não há outro caminho de salvação, e o abandono desta será seguida de destruição. Razão pela qual o apóstolo mostra que este plano foi proclamado em primeiro lugar pelo Senhor mesmo, e depois confirmado por milagres.»
Escreveu estas palavras, em seus comentários o dr. Albert Barnes – que o The New York Times no dia do seu funeral, em 1870, chamou de eminente clérigo – que foi mais o pai do presbiterianismo nos Estados Unidos.

A historicidade da Carta, mormente no cap.11, é argumento que consolida e que sustenta a Fé, como sendo esta o que é, um veículo que conduz à aceitação da Salvação. É, outrossim, um meio para manter acesa a chama da nossa atenção. Para escapar de factos que decorrem da Queda humana, do Pecado e da consequente inimizade com Deus, «como escaparemos?» desse facto da história da humanidade, senão pela reconciliação com Deus, através da Salvação anunciada e concluída pelo Senhor?

Por fim, o próprio versículo-chave que define a Fé (11,1) não será ele um modo de colocar a mesma Fé no caminho da História dos homens, designadamente da história daqueles que crêem, povos ou homens individuais? Não será uma janela que nos transporta a outra dimensão, que questiona a própria História no seu futuro? Não tanto um texto de Meta-História, a História por trás da História, mas o que está adiante de nós na nossa história pela Fé. O que já se alcançou, ainda não alcançando.

3 comments:

Unknown said...

Uma interessante abordagem histórico-crítica da Carta aos Hebreus, no estilo a que o autor já nos habituou. Muito bom.
Abraço.

Brissos

Unknown said...

Uma interessante abordagem histórico-crítica da Carta aos Hebreus, no estilo a que o autor já nos habituou. Muito bom.
Abraço.

Brissos

rui miguel duarte said...

"Como escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande salvação »- proclama o autor da epístola, do ponto de vista do significado (da Teologia) e dos factos( da História). Salvação do pecado e do inferno, é chamada de «grande» porque é grande o Seu Autor."

Realço como central este parágrafo. A dialéctica história / fé conduz esta exposição sobre a Carta aos Hebreus. A fé cristã tem uma base histórica, e isso é evidente da expressão do pensamento bíblico (designadamente aqui neo-testamentário). Donde resulta que é falsa a célebre dicotomia "Cristo da História" / "Cristo da Fé".