Monday, January 18, 2010

A ficção como releitura da Bíblia na forma de conto

A Bíblia Sagrada está repleta de episódios que são contos, a parábola do Filho Pródigo é, tecnicamente, um conto. O Velho Testamento tem bastantes.

O conto está para o romance, como o soneto pode estar para uma epopeia. É um som carregado de harmonia, que se vai tornando instantânea a cada frase, fala directa, ou verso, até que se extingue aos nossos ouvidos, deixando-nos ficar a sós com a personagem ou personagens, o conflito ou a colisão de conflitos, os ambientes, os tempos cronológico e histórico, que povoaram por instantes a nossa imaginação.
Todos os contos de Florbela Ribeiro são, em regra, assim, histórias breves, short-story para produzirem um único efeito. Não são arengas morais para despertar emoções fáceis, são vivências. Mas naturalmente têm uma estrutura simbólica e da Fé da autora.
Ela usa as personagens que a Bíblia Sagrada, do ponto de vista historiográfico, nos revela tanto no Velho como no Novo Testamentos.
São, genericamente, figuras que protagonizaram a realidade histórica. No VT a narrativa de alguns profetas, a própria génese do povo hebreu a partir de episódios abraâmicos, no NT a narrativa evangélica de autor, como Lucas.
Mas a autora aveirense introduz uma nuance, comum a quase todos os contos, que é a sua acurada visão feminina. São contos, quase todos, os éditos e os inéditos que conhecemos, escritos no feminino. Há por isso hoje, na ficção evangélica, o género conto com uma narrativa no feminino.
«Jéssica repousava a excessiva magreza do seu corpo cansado e doente. Na cama adornava a silhueta esguia com uma nobre e delicada colcha de linho, bordada à mão. Mas permitiu que o seu olhar baço pela dor se ausentasse dali. Através da janela entreaberta, entrava uma brisa fresca, que fazia esvoaçar com subtil leveza a brancura da cortina de organdi.» (O auto-retrato)

Perscrutamos até alguma alteridade nas suas personagens.

«A dor que me inundava naquele momento era indescritível.
Um redemoinho vindo ninguém sabe de onde, destruiu por completo a minha vida.» (Redemoinhos)


«Saboreávamos os primeiros dias de Primavera.
Porém o calor intenso que se fez sentir durante todo o dia, forçou-nos a um recolhimento quase que obrigatório.» ( A Filha da Cananeia)


Com isto não queremos afirmar que há contos cujas entrelinhas contêm auto-biografia. Se esta existe é apenas ao nível do pensamento, porque a autora pensa as suas personagens à sua imagem.
Identifica-as nos seus dramas, e identifica-se com o climax de alegria que atingem, toma partido.
O que é interessante verificar, é que jamais deixa as suas personagens ( sobretudo elas) sozinhas, acompanha-as até ao pathos mais doloroso e por isso sai com elas vitoriosa em demanda dos louros do agonista que ganha uma batalha, ou uma pugna. Existe em algumas das suas histórias, o que os gregos chamaram de anagorise, isto é, momentos críticos onde se vê a reviravolta do destino do protagonista ( caso conhecido do conto Por um Fio, que ficciona a vida da prostituta Raabe, de Jericó)

Submersa num revolto mar de silêncios, permanecia a fatídica onda que a lançou naquela vida. Com os olhares do povo cravados nas costas, deslizava pelas ruas da cidade de Jericó com o rosto escondido por uma burka negra. Todos sabiam quem ela era, e principalmente o que fazia.
Durante muito tempo agonizou, pela facada traiçoeira do destino. Chorou amargamente a dor do infortúnio que arrombara a sua porta, lançando-a na lama juntamente com o nome do seu pai. Mas toda a família permanecia unida, sofrendo com ela e por ela. (Por um Fio)

Alguns contos de Florbela Ribeiro vieram abrir uma brecha no pensamento anquilosado de que a narrativa bíblica com personagens é estanque, é o que a Escritura apresenta em letra de forma, e pronto.
Esquecem-se esses, que cada personagem tem uma história, ou melhor uma meta-história, a história de vida que não está escrita, que pode ser deduzida, legitimamente recriada, desde que se não quebre a estrutura simbólica e da Fé.
A viúva de Naim teve uma história e o filho morto, que Jesus Cristo ressuscitou, também. Doutro modo, o evangelista Lucas não teria narrado que Jesus o entregou a sua mãe. Para quê? Para o prosseguimento da sua história de juventude que a morte viera cercear.
O conto a que a autora deu estrutura de reportagem ( Reportagem em Naim), metendo-se na pele de uma jornalista repórter que acompanha o caso, é exemplar quanto à sugestão de uma história pessoal de família para além da canonicidade do texto lucano, para além mesmo do conteúdo literal da narrativa.
Florbela Ribeiro prossegue na sua escrita evangélica, ou melhor bíblica, os caminhos disciplinares da Escrita Criativa. Este tipo de composição, a que também se pode chamar escrita imaginativa, baseia-se na formação e expressão de imagens mentais e conceitos arquivados na sua memória e na sua cultura da Bíblia. Recombina todo este acervo interior com fantasia, q.b., sem fugir nunca das estreitas balizas que o Texto Sagrado lhe coloca, mas que a escritora sabe seguir com uma imaginação e uma dicção conceptual, de profundo pensamento cristão, mesmo quando se trata de narrativas estruturadas sobre o narrado no Velho Testamento.
A autora é uma ficcionista, ainda quando conhecemos de cor os episódios, as personagens, a moral que o texto sagrado nos quer transmitir. Não inventa verdades, dá-nos na sua linguagem criadora, não raras vezes poética, a Verdade com a veste diáfana da fantasia.

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