
Por muito que procurem evidenciar o contrário na estrutura religiosa e popular do seu discurso, existem hoje «igrejas» que ao designarem-se como centros de ajuda espiritual, querem governar Deus. -«Vamos buscar esse Deus- proclamam-, preparem o copo de água».
Nos seus conceitos ditos cristãos, nem Deus, nem Jesus Cristo estão no centro da Revelação, a importância revelacional vai toda para o que é socioeconómico, para não falar de ícones periféricos ( isto é, copos de água, fogueiras santas, monte de Sinai, cruz de fogo, etc.), como transferências do profano para o sagrado ou a necessidade de uma presença «sagrada» visível e palpável, no dizer de Roger Caillois.
O que se tenta fazer, numa homilética manipuladora de massas normalmente carentes, umas, e outras ambiciosas, é a compatibilização do incompatível, teologia e ciência económica, cristianismo e mercado, espírito e matéria, Deus e Mamom.
Alguns desses líderes da ajuda espiritual contribuem, irreflectida e inconscientemente, para o pensamento do século XIX, de Ludwig Feuerbach, segundo o qual todos os conceitos de Deus são invenções humanas, sejam eles cristãos ou não, e se projectam das esperanças ou dos temores humanos.
O homem após ter-se perdido de Deus, «reencontrou-se» em si próprio, é o resultado em palavras simples a que a crítica religiosa de Feuerbach chega. O homem convencido da sua incapacidade de realizar, pelos próprios meios, a verdade, o bem, o amor, projecta esses atributos humanos para fora de si e cria um ser superior a que chama Deus. Assim, conclui o filósofo, esse Deus prejudica a boa vontade do homem.
Entre outras incursões, Feuerbach levou seu pensamento para o materialismo. E com este foi levado à crítica religiosa, e no entanto escreveu a sua obra máxima que foi A Essência do Cristianismo. Mas atenção, como se sabe, esta obra é uma crítica ao Cristianismo, com ela conseguiu fazer que Marx reformulasse o seu idealismo hegeliano e se mudasse para o trono do materialismo. A tal ponto que Engels, o amigo de Marx, saudou assim esse novo materialismo: «fora da natureza e dos homens nada há, e os seres superiores criados pela nossa imaginação religiosa não são mais do que o reflexo fantástico do nosso próprio ser.»
Esta essência do cristianismo não propunha Cristo nem uma teologia, propunha uma antropologia e o Homem no lugar da divindade. O ser humano projectando Deus.
Mesmo agora, uma ideia de Deus começa a tomar forma em vocábulos como «triunfar», «alcançar objectivos», «projectos» e «fé», como palavra mágica. Estes termos fazem parte do discurso, numa dicção suavemente carregada de sotaque das Américas. E pretendem que o Senhor fique às ordens de bispos, pastores, obreiros, que o tratam no mesmo tom de voz, como um Deus que se demove por dicções de pseudo-psicologistas, pelas palavras com lágrimas dentro, e não no sacrossanto Nome do Seu Filho Jesus Cristo.
Salvaguardadas as devidas proporções, porque longe de mim guindar tais centros religiosos à categoria de dotados intelectualmente, existem no entanto auto-designadas «igrejas» que logram criar um deus governável pelos líderes, um deus a quem se manda fazer, determinando já o homem a vitória.
Tais «organizações», evito agora chamar-lhes igrejas, parece que pretendem notabilizar a ideia filosófica segundo a qual Deus é a projecção exterior dos desejos do homem, não já como Feuerbach defendia, do desejo de perfeição do homem, mas de algo que o hedonismo económico e o anseio de prosperidade trouxeram nos últimos 30 anos do século XX, acentuando-se neste início do XXI de uma forma pouco normal.