Friday, January 29, 2010

À Saída da Escola: ("A Poesia é uma imaginação")

Quando toca às 17:45, as crianças querem todas a lua, não no sentido em que Calígula a queria, mas a liberdade de correr uns contra os outros, uns pelos outros, pelo recreio até aos pais e avós.
O meu neto Vasco, veio e disse-me:-Avô, hoje fizemos uma poesia. Que as pedras cantam. Sabes, avô, uma poesia é uma imaginação.
Parei, respondi-lhe a perguntas seguintes que também eu fazia poesias e que sabia que as pedras podem clamar, cantar e chorar lágrimas, sobretudo quando chove.
Mas pensei: ando a ler há quatro décadas pelo menos, Aristóteles, Horácio, Shelley, Johannes Pfeiffer, Todorov, Jean Cohen, Rainer Maria Rilke, e até Marcuse, para saber o que é a Poesia. Ouço cursos de Poética, Estética de Plotino, até o "Carteiro de Pablo Neruda" sobre a metáfora.
E o meu neto, Vasco Parreira, 7 anos, disse-o de uma penada: - Avô, é uma Imaginação. A poesia é uma imaginação.

Monday, January 18, 2010

A ficção como releitura da Bíblia na forma de conto

A Bíblia Sagrada está repleta de episódios que são contos, a parábola do Filho Pródigo é, tecnicamente, um conto. O Velho Testamento tem bastantes.

O conto está para o romance, como o soneto pode estar para uma epopeia. É um som carregado de harmonia, que se vai tornando instantânea a cada frase, fala directa, ou verso, até que se extingue aos nossos ouvidos, deixando-nos ficar a sós com a personagem ou personagens, o conflito ou a colisão de conflitos, os ambientes, os tempos cronológico e histórico, que povoaram por instantes a nossa imaginação.
Todos os contos de Florbela Ribeiro são, em regra, assim, histórias breves, short-story para produzirem um único efeito. Não são arengas morais para despertar emoções fáceis, são vivências. Mas naturalmente têm uma estrutura simbólica e da Fé da autora.
Ela usa as personagens que a Bíblia Sagrada, do ponto de vista historiográfico, nos revela tanto no Velho como no Novo Testamentos.
São, genericamente, figuras que protagonizaram a realidade histórica. No VT a narrativa de alguns profetas, a própria génese do povo hebreu a partir de episódios abraâmicos, no NT a narrativa evangélica de autor, como Lucas.
Mas a autora aveirense introduz uma nuance, comum a quase todos os contos, que é a sua acurada visão feminina. São contos, quase todos, os éditos e os inéditos que conhecemos, escritos no feminino. Há por isso hoje, na ficção evangélica, o género conto com uma narrativa no feminino.
«Jéssica repousava a excessiva magreza do seu corpo cansado e doente. Na cama adornava a silhueta esguia com uma nobre e delicada colcha de linho, bordada à mão. Mas permitiu que o seu olhar baço pela dor se ausentasse dali. Através da janela entreaberta, entrava uma brisa fresca, que fazia esvoaçar com subtil leveza a brancura da cortina de organdi.» (O auto-retrato)

Perscrutamos até alguma alteridade nas suas personagens.

«A dor que me inundava naquele momento era indescritível.
Um redemoinho vindo ninguém sabe de onde, destruiu por completo a minha vida.» (Redemoinhos)


«Saboreávamos os primeiros dias de Primavera.
Porém o calor intenso que se fez sentir durante todo o dia, forçou-nos a um recolhimento quase que obrigatório.» ( A Filha da Cananeia)


Com isto não queremos afirmar que há contos cujas entrelinhas contêm auto-biografia. Se esta existe é apenas ao nível do pensamento, porque a autora pensa as suas personagens à sua imagem.
Identifica-as nos seus dramas, e identifica-se com o climax de alegria que atingem, toma partido.
O que é interessante verificar, é que jamais deixa as suas personagens ( sobretudo elas) sozinhas, acompanha-as até ao pathos mais doloroso e por isso sai com elas vitoriosa em demanda dos louros do agonista que ganha uma batalha, ou uma pugna. Existe em algumas das suas histórias, o que os gregos chamaram de anagorise, isto é, momentos críticos onde se vê a reviravolta do destino do protagonista ( caso conhecido do conto Por um Fio, que ficciona a vida da prostituta Raabe, de Jericó)

Submersa num revolto mar de silêncios, permanecia a fatídica onda que a lançou naquela vida. Com os olhares do povo cravados nas costas, deslizava pelas ruas da cidade de Jericó com o rosto escondido por uma burka negra. Todos sabiam quem ela era, e principalmente o que fazia.
Durante muito tempo agonizou, pela facada traiçoeira do destino. Chorou amargamente a dor do infortúnio que arrombara a sua porta, lançando-a na lama juntamente com o nome do seu pai. Mas toda a família permanecia unida, sofrendo com ela e por ela. (Por um Fio)

Alguns contos de Florbela Ribeiro vieram abrir uma brecha no pensamento anquilosado de que a narrativa bíblica com personagens é estanque, é o que a Escritura apresenta em letra de forma, e pronto.
Esquecem-se esses, que cada personagem tem uma história, ou melhor uma meta-história, a história de vida que não está escrita, que pode ser deduzida, legitimamente recriada, desde que se não quebre a estrutura simbólica e da Fé.
A viúva de Naim teve uma história e o filho morto, que Jesus Cristo ressuscitou, também. Doutro modo, o evangelista Lucas não teria narrado que Jesus o entregou a sua mãe. Para quê? Para o prosseguimento da sua história de juventude que a morte viera cercear.
O conto a que a autora deu estrutura de reportagem ( Reportagem em Naim), metendo-se na pele de uma jornalista repórter que acompanha o caso, é exemplar quanto à sugestão de uma história pessoal de família para além da canonicidade do texto lucano, para além mesmo do conteúdo literal da narrativa.
Florbela Ribeiro prossegue na sua escrita evangélica, ou melhor bíblica, os caminhos disciplinares da Escrita Criativa. Este tipo de composição, a que também se pode chamar escrita imaginativa, baseia-se na formação e expressão de imagens mentais e conceitos arquivados na sua memória e na sua cultura da Bíblia. Recombina todo este acervo interior com fantasia, q.b., sem fugir nunca das estreitas balizas que o Texto Sagrado lhe coloca, mas que a escritora sabe seguir com uma imaginação e uma dicção conceptual, de profundo pensamento cristão, mesmo quando se trata de narrativas estruturadas sobre o narrado no Velho Testamento.
A autora é uma ficcionista, ainda quando conhecemos de cor os episódios, as personagens, a moral que o texto sagrado nos quer transmitir. Não inventa verdades, dá-nos na sua linguagem criadora, não raras vezes poética, a Verdade com a veste diáfana da fantasia.

Sunday, January 17, 2010

Rondine al nido: Crónica p/Diário de Aveiro

Ingrata tarefa do escritor de crónicas que não pode introduzir no texto os discursos ficcionados, que são a torrente do rio calmo ou tempestuoso das suas personagens.
Tem que se limitar aos factos, os que estão no fundo da sua recordação, ou qualquer outro pedaço de ficção que a sua imaginação liga à realidade.
Sentado diante do computador, olha em vão o cinzento do dia que a janela lhe revela, ouve o som da chuva que inunda a primeira condição do vidro dessa janela, o silêncio frio, ouve o tamborilar das gotas na tijoleira da varanda, como na primavera ouve o arrulhar e o trissar das andorinhas.
Senta-se e socorre-se de um cd, que vem navegando pelo ar desde o Sony na voz do desaparecido Pavarotti que lhe canta, pela sala e pela casa fora, o Rondine al Nido.
O acto de escrever é feito de vários somatórios, ideia, música, facto, a notícia, a beleza - mesmo descontando o que poeta Rainer Maria Rilke disse, que o belo não é senão o começo do terrível, tudo se soma no acto de escrever uma prosa fiada ( classificou-a assim Vinicius de Moraes), uma prosa corrida sobre o que o mundo conhece.
O assunto não falta, é o momento.
Haiti, um país (se é que era um país), prefiro dizer a país uma casa, um lar pobre e empobrecido, que foi preciso submergir na catástrofe do chão para ser lembrado pelos telejornais e se falar em fait divers a par dos seus problemas. E agora estes são as pessoas, os velhos, as mulheres, os homens, as crianças em escombros.
O tópico é infalível, mas quero antes ligar esta prosa á canção napolitana que ouvia na voz do Luciano. O tema da canção era as andorinhas que regressam todo o ano, na primavera, menos aquelas que já não podem mais voltar.
E veio ao meu pensamento, a crónica das crianças, meninas e meninos, que já não regressaram da Escola. Esperaram aqueles que tiveram a dita de estar vivos, esperaram em vão mas elas não vieram.
O regresso não teve mar bilhante nem Ítaca nem Penélope. Andorinhas a quem o sol secou as asas no pó do chão. As varandas estão desertas. O silêncio ao redor não é o do céu azul das Caraíbas, nem bate já com as asas das aves. Jamais se poderá beijar os cabelos crespos do filho ou filha que a escola para sempre escondeu.
16/01/2010

Friday, January 15, 2010

Haiti: "Todos são meus filhos"

Para quebrar o silêncio que certas palavras carregam:

Crédito da foto: El Pais
Da peça de Arthur Miller: «Todos são meus filhos»

Saturday, January 09, 2010

Conto: O Náufrago

No Blog A Ovelha Perdida, de Brissos Lino, "le mon Éditeur", uma short story sobre o sonhos e o ciúme e o Amor, Freud e Deus. Este conto foi um desafio que a contista Florbela Ribeiro me lançou no Facebook.
«Agarrou-se ao amor porque era mármore, uma pedra de mármore no meio do mar.
Não sabe ainda hoje o tempo que o sonho durou, nessa noite, das galerias do sonho sabe apenas que acordou com as mãos agarradas, num último gesto, à almofada.»

Saturday, January 02, 2010

O Hóspede e a sua exegese

A exegese ao poema feita pelo Poeta Rui Miguel Duarte:
O que parece ser uma recriação da narrativa a partir da anagnórise de Jesus na estrada de Emaús. Um Alguém (Jesus?) com ar tão frágil e sensível ao que o rodeia ("olhos indecisos […] "estremece / à mais pequena folha"), tão humano que carrega sono. Cristo ou alguém por Ele. Personagem enigmática este hóspede, com os seus "sonhos / de distância" e "uma metáfora dissonante". Não nas palavras que diz, como ramos, mas nesse gesto que o revelou em Emaús, o partir do pão.
O Hóspede (poema édito em Poeta Salutor)

Depois de a noite se instalar
ao redor do fogo, abrir sobre a cama
o espaço para o corpo
e os lençóis que ainda trazem
os perfumes da manhã
Alguém chega, pela noite
com olhos indecisos e os sonhos
de distância, traz sono e estremece
à mais pequena folha
que cai na noite fresca
Esse Alguém
pode trazer um coração lavado
uma metáfora dissonante
ramos de palavras, e partindo
o pão, abrir os nossos olhos.