Sunday, March 03, 2013

O CORRESPONDENTE: CONTO




Ainda apanhei os homens a tempo. A correria após saber que ia dar-se uma prisão importante, deixara-me sem fôlego. Não queria perder nada do que aquele grupo de gente suspeita iria fazer.
Eu não sabia os motivos e estava decidido a entender o que estava a conduzir aquela grande turba munida de espadas e cacetes, sobretudo os contornos daquela tensão que parecia roer os rostos. Eram os homens e o alegado preso que me interessavam mais.
Assisti um dia à prisão de Barrabás. Ser levada a cabo exclusivamente por judeus, chefes religiosos, levitas e guardiões do templo, populares e uma escassa companhia de legionários romanos, era uma particularidade desta nova detenção.
-Não quero perder instante algum, deste acto justicialista– disse para um homem que ia, também ofegante, ao meu lado. Empreguei, de propósito, este termo por uma convicção inusitada que me assaltara, ao ver no grupo homens armados e com vestes civis. E continuamos a caminhar, na noite, em passo acelerado.
A turbamulta precipitava-se para um ponto preciso. A direcção que tomava, já entre o arvoredo, era o Monte das Oliveiras. O jardim antigo que fica na base do Monte e onde esteve instalado um lagar de azeite.
-Quem estará a esta hora no jardim? – inquiri para o lado, mas ninguém me respondeu.
Tudo aquilo me parecia estranho. O vento, leve mas constante, fazia rodopiar os restos de folhas velhas pelo chão irregular.
-Dizem que era aquele que derrubava o templo – arguiu um homem com pressentida emoção na voz.
-Está quase sempre com discípulos – lembrou outra voz, uns passos à minha frente.
-Lá para o norte, em Cafarnaum, fez andar um paralítico – disse outro, num tom exaltado.
-No Jordão? Ah quando o filho do velho Zacarias chamava raça de víboras e baptizava, lembrei-me agora- perguntou e arguiu outro, enquanto se desviava de um ramo de oliveira a meia altura de um homem.
-Sim, foi baptizado nas nossas águas – responderam-lhe outros.
-Esse, o baptizador, clamava pela ira vindoura até ficar sem cabeça – ironizou alguém.
-Mas este, parece que tinha palavras e actos de caridade – esta voz compreensiva, de um homem de aspecto jovem que ia perto de mim, pareceu-me ter alguma bondade.
-É mais um profeta, é o que é – disse uma voz de alguém que se juntara a tempo. -Ou um rabi – concluiu o mesmo.
-Nunca o vi, mas parece que está connosco quem o conhece bem e nos fará qualquer sinal- disse um homem armado com uma espada para descansar aqueles que não faziam nenhuma ideia sobre quem iam prender. – Lá à frente vai alguém que o conhece bem, terá andado com ele – disse uma voz áspera e esta informação deu-me a ideia de que começava a perceber-se que havia gente informada no grupo.
Percebi que davam grande importância ao pormenor, como saberem quem era o alegado homem a prender. Talvez ninguém se tivesse dado conta, mas foram falando acerca do futuro de um homem que uns conheceriam e outros não conheciam de todo.
Estes diálogos nocturnos suscitavam-me um pensamento, falavam para afastar fantasmas ou inexplicáveis medos e, também, para que o vazio escuro se preenchesse com alguma coisa menos os temores ou as incertezas sobre o que iriam fazer.
Era uma grande turba com paus e lanças. A força estaria do seu lado. As árvores que iam subindo o Monte das Oliveiras escureciam o lugar tanto quanto a noite que caíra no jardim onde se encontrava o outro grupo.
Ao fundo, o Vale de Cedrom esperava a manhã para se abrir em beleza diante dos nossos olhos. Mas aquela espécie de brilho que se atravessava entre os dois bandos, vinha do ribeiro de Cedrom, antes do jardim, que àquela hora da noite espelhava um luar.
A tensão do nosso grupo repercutia-se, como um tropel, no chão, ao aproximar-se do sopé do Monte onde estava o jardim do Getsemani. Com a proximidade do momento, percebia-se que o nervosismo se adensara, a ajuizar pelas bocas que se foram fechando. Parecia que uma rajada de silêncio retirara as vontades de falar aos homens, que agora começavam a refrear os seus passos e a conter a voz. O silêncio tornou-se denso, quando cautelosamente se aproximavam do grupo que parecia já vir ao encontro. De lá, distinguiu-se uma voz calma, sem nenhum transtorno de pânico: “- Levantai-vos, vamos! Eis que o traidor se aproxima.”
As flores do jardim que as sombras tornavam metálicas, sem cor, eram como estrelas apagadas que se distinguiriam na noite, caso isso fosse possível, pelas silhuetas no universo.
Quase belo, o homem com aspecto ainda jovem, que não passaria muito dos trinta anos, com uma túnica suja no lugar dos joelhos, que se salientou tomando a dianteira do grupo que vinha ao nosso encontro, não apresentava nem temor nem espanto. Os seus companheiros moviam-se com o que parecia ser uma fatalidade desorganizada; mas ele não, ele vinha sereno, de braços caídos, mas sereno. Tomei nota de que ele conhecia o traidor.
Ele adiantou-se à sua gente como se o ficar no meio dela pudesse prejudicar a missão que deveria ter, foi o que mais tarde relatei. Aguardava este momento, pareceu-me disse-o para mim mesmo, desde sempre. E a palavra eternidade seria a mais adequada, aquela que eu aprendi a usar melhor.
-É aquele, que foi beijado – disse um rapaz que estava perto e sublinhou a descoberta com um abanar de cabeça. Depois disse qualquer coisa para o lado, que já não pude ouvir. O tumulto começou.

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Publicado inédito Aqui

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