Sunday, October 18, 2009

Ferida, poema de Rui Miguel Duarte

“Espera-O uma coroa de espinhos
para secar o sangue sobre a fronte, espera-o
a fome de um chicote
que as costas lhe há-de devorar”

J. T. Parreira, “No Jardim do Gêtsemani”


A fome batia uma litania
vai e vem sobre o dorso como tambor
O látego batia em sintonia
com a contagem ritmada
da voz do decurião
uma, duas, três, até quarenta
e com os gritos
de dor do condenado

E latejava as nossas cabeças
dentro de cada dentada das fauces
do chicote estampido vai e vem

Acirrámos os dentes
em aprovação do castigo
e dos gritos do condenado
as costas devoradas
as gotas de sangue salientes
eram o nosso prazer e satírico canto

Mas não deixávamos de pensar
que a obra do carrasco
devia ficar na discrição
recôndita duma caserna romana
longe da vista e do coração
e ensaiámos apartar o olhar
desviá-lo do esbatimento do seu rosto
em busca da geometria da dança
de um bando de pássaros que por ali voasse
ou admirar as coríntias colunatas do pátio
onde decorria o evento

Mais tarde esperava-o uma coroa
sobre a cabeça de espinhos
para o sangue na fronte lhe secar

E escorria das nossas cabeças

E depois ainda
esperava-o ser fixado na cruz
poucos de nós ficaram para ver
preferimos meter-nos pelas cruzes das ruas
pés apressados para o recolhimento e a piedade
pois esperava-nos a Peschah em casa
ao lume do assado do cordeiro,
o único a quem hoje se devia secar o sangue

Mas o vai e vem do flagelo batia em nós
e a voz de comando do decurião e os gritos de dor
o sangue porfiava em correr de nós
como mulheres nos dias da impureza
os panos não o estancavam
banhámo-nos mas a água
solidária tingia-se de escarlate

O chicote a coroa a voz do decurião e o sangue éramos nós
o que tínhamos nós com esse contumaz blasfemo
de rosto deformado condenado?

Caímos no chão

Éramos nós os condenados
de costas devoradas e frontes sangradas
à beira do vale onde a morte se dissimula de sombra

Por fim acordámos

Esse sangue
penetrava-nos até ao coração
e corria agora neles
lavados

17/10/09

Rui Miguel Duarte

4 comments:

Unknown said...

Muito bom. A cultura greco-romana por detrás do poema é bem evidente, assim como o conhecimento bíblico-judaico. Parabéns ao Rui, que o escreveu, e ao João, que o editou.
Um abraço a ambos,

Brissos Lino

rui miguel duarte said...

O quadro é de Dali, se não me engano? Fica excelente.
Obrigado pela publicação.
Um abraço, João, e vamos andar por aqui, como diz o Dr. Santana Lopes (mas com maior proveito e utilidade!).

P.S.: Engano meu, mas devia ler-se no fim: "corações". Alterei para singular, não acertei as concordância nos versos seguintes, mas o plural fica melhor ("cabeças" como precedente).

J.T.Parreira said...

O Papéis na Gaveta é que agradece.
O quadro é de Dali, A Cruificação de Cristo.

Unknown said...

Parabéns Rui!
Sem dúvida profundo, complexo e estimulante!
O novo poeta é bem vindo! Um tema abordado de forma muito intensa e sentida...corajoso! Gostei.
Maria José Pereira Cóias